domingo, 27 de abril de 2014

O golpe contra os trabalhadores



Em greve por salários, trabalhadores da Rhodia fazem passeata em 1959. Diante do
ascenso operário, elites preferiram ditadura, cinco anos depois

Ditadura foi, sobretudo, reação das elites contra mobilizações trabalhistas no campo e cidade. Sintomaticamente, muitos balanços omitem, hoje, este dado essencial


Por Paulo Fontes

[Depois de encomendar um artigo sobre o golpe, “O Globo” preferiu não publicá-lo. Veja nota do autor a respeito]


Em recente editorial no qual reconhece que o apoio ao golpe de 1964 foi um erro, o jornal O Globo justifica de forma reveladora que seu entusiasmo com a queda do governo de João Goulart era devido ao temor da instalação de uma suposta “República Sindical” no país. A retórica anticomunista e a histeria conservadora que contagiavam vastos setores das classes médias e altas tinham um alvo claro: o crescimento da organização de operários e de vastos setores populares nas cidades, bem como a impressionante mobilização de camponeses nas zonas rurais. O inédito espaço político conquistado por lideranças sindicais incomodava e amedrontava. O golpe de 1964 foi, antes de tudo e sobretudo, um golpe contra os trabalhadores e suas organizações.

A presença pública e as lutas por direitos dos trabalhadores brasileiros, intensas desde o final da II Guerra Mundial, atingiriam seu ápice no início da década de 1960. Os sindicatos foram os principais vetores da organização popular naqueles anos. Mas tal mobilização também ocorria através de associações de moradores e espaços informais, como clubes de bairros e instituições culturais. Estudos recentes mostram que, ao contrário do que se supunha, a presença sindical nos locais de trabalho se fortalecia. No campo, a emergência das Ligas Camponesas, e suas demandas por uma Reforma Agrária transformadora, surpreendeu o país e colocou os trabalhadores rurais no centro do cenário político.

Trabalhistas, católicos, comunistas, janistas, entre diversas outras forças políticas, disputavam e formavam alianças no interior deste movimento. Greves, protestos e uma linguagem marcadamente nacionalista e reformista embalavam reivindicações por transformações estruturais e pela conquista de direitos desde sempre negados, como a lei do 13o salário e a sindicalização no campo.

Em um contexto marcado pela Guerra Fria e pelos impactos da Revolução Cubana, esta presença pública dos trabalhadores significava, para muitos, a antesala do comunismo. A desenvoltura com que lideranças camponesas e dirigentes do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) se aproximavam do governo e do presidente Jango (nunca perdoado por cultivar essas “relações perigosas”) era particularmente execrada. A visibilidade desta aliança no famoso comício da Central do Brasil no dia 13 de março foi a gota d’água para os grupos conservadores e golpistas. Apesar da intensa campanha contra o governo, pesquisas de opinião então realizadas, e durante muito tempo ocultadas, mostram que a maioria da população apoiava Jango e suas reformas.

O golpe acabou com tudo aquilo. E surpreendeu muitos dirigentes sindicais, radicalizados e demasiadamente confiantes na sua influência política e poder de mobilização. Para os vitoriosos, era primordial destruir a “hidra comunista e trabalhista”. Sindicatos em todo o país foram invadidos, sofreram intervenções governamentais e tiveram seu patrimônio dilapidado. Suas lideranças foram presas, caçadas e, algumas, assassinadas. A ditadura foi dura desde seu primeiro dia.

Entidades empresarias, como a FIESP, celebraram a nova era. A queda do governo foi a senha para a revanche patronal. Milhares de trabalhadores foram demitidos e, devido à proliferação das infames “listas negras”, tiveram enormes dificuldades para encontrar novos empregos. A aliança entre empresários e o DOPS que, como historiadores já demonstraram, vinha de longe, tornou-se ainda mais sólida e disseminada. Um clima de medo e perseguições passaria a dominar o interior das empresas. No campo, um número ainda não calculado de trabalhadores rurais foi expulso de suas comunidades e muitos foram mortos por milícias privadas e capangas a serviço de latifundiários.

Uma política econômica antitrabalhista proibiu greves, comprimiu salários, acabou com a estabilidade no emprego, facilitando demissões e a rotatividade da mão de obra. Seu impacto foi tão grande que o ditador Castello Branco viu-se obrigado a reiteradamente repetir, em vão, que “a Revolução não era contra os trabalhadores”. O deliberado enfraquecimento dos sindicatos facilitou em muito a superexploração do trabalho, uma das marcas do regime, que faria do país o campeão mundial em acidentes e mortes no trabalho no início dos anos 1970.

A mesma ditadura que tanto reprimiu e controlou os sindicatos e organizações populares chegaria ao fim, em grande medida, pela força e mobilização dos trabalhadores. Fruto de uma persistente resistência cotidiana e de transformações de vulto na sociedade brasileira, as grandes greves que, a partir do ABC paulista, tomaram conta do país, clamaram novamente por justiça e democracia. Ao mesmo tempo revitalizaram o sindicalismo e deixaram marcas presentes até hoje em nossa vida política e social.

No entanto, ainda sabemos pouco sobre a história dos trabalhadores durante a Ditadura Civil-Militar. Boa parte do interesse dos estudiosos sobre o período concentrou-se em outros grupos sociais e temas, o que se reflete na literatura e na programação dos numerosos eventos que analisam os 50 anos do golpe. Felizmente, este quadro começa a mudar. Neste sentido, a abertura dos arquivos governamentais, incluindo o do Ministério do Trabalho, cuja documentação apodrece, sem cuidado algum, em um prédio da periferia de Brasília, é um passo fundamental. E sem dúvida, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade poderá ter um papel decisivo neste encontro do Brasil com sua história.



Paulo Fontes é professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV) onde coordena o Laboratório de Estudos dos Mundos do Trabalho e Movimentos Sociais. No momento, é Visiting Fellow no Instituto Re:work da Humboldt University em Berlim.


FONTE: Outras Palavras

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Internacionalismo camponês


Por Esther Vivas


Terra, água e sementes são imprescindíveis para cultivar e comer. Ou alimentos para a maioria ou dinheiro para a minoria, esta é a questão. A Via Campesina, o maior movimento internacional de pequenos agricultores, trabalhadores rurais e camponeses sem terra, reivindica-o dia a dia. No dia internacional da luta camponesa, 17 de abril, recordamos a sua história.

Combatendo a globalização alimentar

A globalização alimentar, desenhada por e para a agro-indústria e os supermercados, privatiza os bens comuns, acaba com aqueles que cuidam e trabalham a terra e converte a comida num negócio. A liberalização da agricultura, não é mais que uma guerra contra o campesinato. Trata-se de políticas que, apoiadas por instituições e tratados internacionais, acabam com os pequenos e médios agricultores e com as comunidades rurais.

Perante esta ofensiva, emergiu, em 1993, A Via Campesina, como a máxima expressão daqueles que no campo resistem e combatem a globalização neoliberal e os ditames de organizações internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Os antecedentes da Via remontam a meados dos anos 80, quando, devido à Ronda do Uruguai do GATT, várias organizações camponesas levaram a cabo importantes esforços para internacionalizar o movimento.

Em princípios dos anos 90, constituiu-se A Via, em parte, como uma alternativa mais radical à até então única organização internacional camponesa, a Federação Internacional de Produtores Agrícolas (IFAP), criada em 1946. Uma organização que representava, principalmente, os interesses dos maiores agricultores, situados, em general, nos países do Norte, e favorável ao diálogo com as instituições internacionais.

A Via Camponesa nasceu, assim, nos alvores do movimento altermundialista, coordenando esforços juntamente com muitas outras organizações, desde feministas a grupos contra a dívida externa, passando por aqueles que exigiam a taxação das transações financeiras internacionais a indígenas, coletivos de solidariedade internacional…, unidos no combate contra uma globalização ao serviço dos interesses do capital. A Via acabou por ser o "componente camponês” deste "movimento de movimentos”.

Desde finais dos anos 90 e princípios da década de 2000, a Via Campesina impulsionou e participou ativamente nos protestos massivos contra a OMC e outras instituições internacionais. Nas marchas contra a cimeira da OMC em Cancún (2003) e Hong Kong (2005), os camponeses foram um dos atores mais relevantes e visíveis. Uma lembrança especial merece o camponês coreano Lee Kyung Hae, presidente da Federação de Camponeses e Pescadores da Coreia do Sul, que perdeu a vida no protesto contra a OMC em Cancún ao subir à cerca que rodeava o perímetro de segurança, para denunciar como o agro-negócio acabava com a vida de tantos agricultores.

Por detrás da política de alianças da Via, estava o convencimento de que a sua luta contra a agro-indústria era parte intrínseca de um combate mais amplo contra a globalização neoliberal e que outro modelo de agricultura e alimentação só seria possível no quadro de uma mudança global de sistema. Para consegui-lo, a criação de coligações amplas entre setores sociais diferentes mostrava-se como fundamental. Atacar juntos, a partir de uma unidade tecida com base na diversidade.

A Via Campesina, deste modo, foi capaz de construir uma identidade "camponesa” global, politizada, ligada à terra e à produção de alimentos. Os seus membros representam os setores mais golpeados pela globalização alimentar, pequenos e médios camponeses, trabalhadores rurais, camponeses sem terra, mulheres do campo, comunidades agrícolas indígenas, rompendo a divisão Norte-Sul e integrando no seu seio organizações de todo o planeta, 150 grupos de 56 países. Trata-se, nas palavras de Walden Belo, de um novo "internacionalismo camponês”.

Pela soberania alimentar

A emergência da Via Campesina trouxe, também, um novo olhar sobre as políticas agrícolas e alimentares. Em 1996, no quadro da Cimeira Mundial sobre a Alimentação da FAO, em Roma, a Via lançou um novo conceito político, o da soberania alimentar. Se até então, a fome no mundo só era abordada na perspetiva da segurança alimentar, que todo o mundo tenha acesso e direito à alimentação, mas sem questionar o que se come, como se produz e de onde vem, o conceito cunhado pela Via "revolucionou” o debate.

Já não se tratava unicamente de poder comer, mas de ser "soberanos”, e poder decidir. A soberania alimentar vai um passo para além do da segurança alimentar e não reivindica unicamente que todos tenham acesso aos alimentos mas, também, aos meios de produção, aos bens comuns (água, terra, sementes). Trata-se de uma aposta na agricultura local e de proximidade, camponesa, ecológica, sazonal, em oposição a uma agricultura nas mãos do agro-negócio, que empobrece o campesinato, com alimentos que percorrem milhares de quilómetros antes de chegarem à nossa mesa, que acaba com a diversidade alimentar e que, além disso, nos põe doentes.

Não se trata de uma ideia romântica, de um retorno a um passado arcaico, mas de recuperar o conhecimento tradicional camponês e de combiná-lo com novas tecnologias e saberes, de devolver a dignidade a quem amanha a terra, que esta seja para quem a trabalha, de estabelecer pontes de solidariedade entre o mundo rural e o urbano e, sobretudo, de democratizar a produção, a distribuição e o consumo de alimentos. Não é um conceito que deva ser interpretado num sentido autárcico mas solidário e internacionalista, que aposta numa agricultura local e camponesa aqui e em cada canto do planeta.

As mulheres contam

Uma soberania alimentar que tem que ser feminista, se quer significar uma mudança real de modelo. Hoje as mulheres, apesar de serem as principais provedoras de alimentos nos países do Sul, entre 60% e 80% da produção de comida recai nos seus ombros, são as que mais passam fome, padecendo 60% de fome crónica global, segundo dados da FAO. A mulher trabalha a terra, cultiva os alimentos, mas não tem acesso à propriedade, à maquinaria, ao crédito agrícola. Se a soberania alimentar não permite igualdade de direitos entre homens e mulheres, não será uma alternativa para valer.

A Via Campesina, com o tempo, foi incorporando uma perspetiva feminista, trabalhando para conseguir a igualdade de género no seio das suas organizações e estabelecendo alianças com grupos feministas como a rede internacional da Marcha Mundial de Mulheres. Na Via, as mulheres organizaram-se autonomamente para reivindicar os seus direitos, quer seja dentro dos seus próprios coletivos ou a nível geral.

A Comissão de Mulheres da Via levou a cabo um trabalho fundamental promovendo o intercâmbio entre mulheres camponesas de diferentes países, organizando encontros específicos de mulheres coincidindo com cimeiras e reuniões internacionais e impulsionando a participação destas em todos os níveis e atividades de organização. Em outubro de 2006, celebrou-se o Congresso Mundial das Mulheres da Via Campesina, em Santiago de Compostela, que pôs em relevo a necessidade de fortalecer ainda mais a articulação das mulheres e aprovou a criação de mecanismos para um maior intercâmbio de experiências e planos de luta específicos. Entre as propostas aprovadas estava, entre outras, lançar uma campanha mundial contra a violência machista e trabalhar para que sejam reconhecidos os direitos das mulheres camponesas exigindo igualdade real no acesso à terra, aos créditos, aos mercados e nos direitos administrativos.

Apesar da paridade formal na Via, as mulheres têm maiores dificuldades para viajar ou assistir a encontros e reuniões. Como assinalava, Annette Aurélie Desmarais, no seu livro ‘A Via Campesina’ (2007): "Há muitas razões pelas quais as mulheres não participam a este nível. Talvez a mais importante seja a persistência de ideologias e práticas culturais que perpetuam relações de género desiguais e injustas. Por exemplo, a divisão dos trabalhos por género significa que as mulheres rurais têm muito menos acesso ao recurso mais precioso, o tempo, para participar como líderes nas organizações agrícolas. Dado que as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado das crianças e dos idosos (…). A tripla jornada das mulheres – que implica trabalho reprodutivo, produtivo e comunitário - torna muito menos provável que tenham tempo para sessões de formação e aprendizagem para a sua capacitação como líderes”. Para além das dificuldades objetivas, avançar para a igualdade é uma prioridade para a Via, e isso graças às suas mulheres.

A Via Campesina há mais de 20 anos que vem articulando resistências no campo e tecendo redes e alianças a nível internacional. Alimentar-nos é imprescindível para todos, quer seja no campo ou na cidade, no Norte ou no Sul do planeta. E comer, hoje, tornou-se, como recorda a Via, um ato político.


FONTE: Adital

sábado, 19 de abril de 2014

O milagre econômico chinês: principais determinantes internos


A estratégia de desenvolvimento da China gerou uma dinâmica interna puxada por investimentos, sobretudo públicos em infraestrutura. 


Por Eduardo Costa Pinto *

  


Em 1793, Lorde Macartney e sua comitiva desembarcaram em terras chinesas com a missão de criar um canal comercial entre a Grã-Bretanha e a China que até aquela altura nunca tinha se aberto a outra nação. O imperador Qianlong refutou duramente a proposta e a reação da Grã-Bretanha foi arrombar as portas. Essa derrota chinesa garantiu o domínio inglês no Sudeste Asiático no século XIX.

Alain Peyrefitte, ao refazer o caminho de Macartney em 1960, constatou que muito do que havia sido descrito pela comitiva britânica, há quase dois séculos, se manteve quase intacto. O império chinês permaneceu imóvel entre 1793 e 1960 (nota 1).

Na década de 1990, o próprio Peyrefittealertara que a China estava saindo de sua imobilidade em virtude da era Deng Xiaoping, implementada a partir de 1978. Em outras palavras, o dragão estava despertando de sua longa hibernação e provocando profundas transformações econômicas no sistema internacional, como previra Napoleão Bonaparte há quase duzentos anos ao afirmar em 1816 que: “Quando a China despertar, o mundo tremerá”.

A China saiu da condição de Império Imóvel para se tornar o país mais dinâmico no início do século XXI, transformando-se na locomotiva mundial. Ascensão impressionante!

A economia chinesa cresce 10% ao ano há mais de trinta anos (entre 1978 e 2012), o que a alçou à condição de segunda maior do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos), de “fábrica do mundo” (nota 2), de maior exportador e importador mundial. 

Esse crescimento esteve e está associado ao impressionante desenvolvimento de sua indústria e de seu rápido processo de modernização (passagem do mundo rural ao urbano) que geraram profundas modificações em sua estrutura produtiva e social.

Em 1978, a China tinha uma população de cerca de 956 milhões de habitantes e era um país rural. Daquele ano até os dias atuais, a população chinesa saltou para 1,338 bilhão de pessoas em 2010 (20% da população mundial) e passou a morar cada vez mais nas cidades.

Essa dinâmica vem provocando um aumento no consumo de energia, de bens duráveis e não duráveis e de alimentos na China. Apesar disso, esse país ainda está distante do padrão de consumo por habitantes dos países desenvolvidos.

Existe um amplo debate a respeito dos determinantes do milagre econômico chinês. Apresentaremos aqui os seus condicionantes internos, sem negar a importância da dimensão externa (nota 3), que não será aqui tratada dado o escopo deste texto.

Em 1978, após a 3ª Plenária do 11º Comitê Central do Partido Comunista Chinês (PCC), configurou-se uma nova rota para o modelo de desenvolvimento da China – idealizada por Deng Xiaoping – pautada pelas reformas (nota 4) e pela abertura ao exterior.

Essa mudança buscou deslocar a luta de classe como princípio aglutinador do partido e do Estado colocando em seu lugar o princípio do desenvolvimento econômico como elemento que possibilitaria a ampliação das condições materiais da população chinesa e a manutenção do socialismo com características chinesas.

As diretrizes gerais dessa nova rota chinesa foram: 1) a descentralização das decisões econômicas (redefinição do planejamento e do mercado) por meio da ampliação do papel dos mercados e por meio da delegação de poder para as províncias locais; 2) a adoção de padrões tecnológicos e de modelos de gestão empresarial do mundo capitalista; e 3) o princípio estratégico da abertura ao mundo exterior e da evolução pacífica.

Para Deng Xiaoping, a China só seria respeitada quando se tornasse rica. Em suas palavras: “Só se pode falar alto quando se tem muito dinheiro”. Para ele, isso só seria alcançado por meio da absorção de conhecimento gerenciais e tecnológicos do ocidente capitalista. Era necessário absorver mais capital externo, segundo Deng à época.   

A estratégia institucional para criar esse espaço de aprendizado das práticas estrangeiras foi a configuração das Zonas Econômicas Especiais – Zonas de Processamento de Exportações. Elas foram estruturadas para atrair investimentos estrangeiros (dados os benefícios concedidos) que, em contrapartida, introduziriam métodos modernos de administração e tecnologias no território chinês.

Essas reformas foram sendo construídas paulatinamente, entre 1978 e 1989, em virtude da forte resistência do segmento marxista-lenisnista do PCC. O período de maior tensão foi entre 1989 e 1991. Fatores políticos internos, articulado a queda do Partido Comunista da União Soviética, fortaleceram essa corrente que tomou o poder em 1991.

Para evitar essa nova direção do partido e do Estado, Deng voltou de sua aposentadoria para travar, entre 1991 e 1992, uma ampla batalha para restabelecer suas diretrizes, bem como acelerá-las.

Depois de enfrentamentos e jogadas políticas, Deng, apoiado pelos líderes provinciais do partido e pelo Exército de Libertação do Povo (ELP), conseguiu costurar em 1992 um amplo acordo – denominado o “Grande Compromisso” – entre os segmentos do PCC (anciões, marxistas-leninistas, pró-abertura, líderes locais, tecnocratas e o ELP) para garantir e acelerar o processo de reformas e abertura. O fio condutor do acordo foi a ideia de transformar a China numa nação rica e poderosa até a metade do século XXI.

A estratégia de desenvolvimento nacional gerou dois eixos articulados propulsores do crescimento da China.

De um lado, a dinâmica exportadora promovida pela configuração das ZEEs e pela política cambial (manutenção do iuan desvalorizada em relação ao dólar) e, do outro, a dinâmica interna puxada pela expansão dos investimentos, sobretudo os públicos em infraestrutura.

A expansão pela via do investimento foi possível em decorrência da reforma do sistema financeiro chinês, realizada em 1985, que tanto ampliou o funding (recursos financeiros) como criou instrumentos para direcioná-los para o investimento. Expandiu-se a participação do setor privado, mas o controle do sistema bancário foi mantido na administração pública, possibilitando o direcionamento da poupança das famílias e das empresas para as corporações públicas e privadas que desejam investir.

Além dessas reformas, o crescimento chinês também vem sendo impulsionado por uma condução gradualista da política macroeconômica (monetária e fiscal) que combina a busca pelo controle inflacionário e pela manutenção do ritmo de crescimento estável e relativamente rápido, que garante a legitimidade interna do PCC.

Articulada aos elementos macroeconômicos, a política industrial foi e é também um instrumento importante para a dinâmica chinesa. Dentre as medidas nessa área, podemos destacar: i) o crédito subsidiado para as empresas estatais por meio dos bancos públicos; ii) os incentivos voltados aos investimentos estrangeiros de alta tecnologia;iii) as barreiras não tarifárias e tarifárias, sendo que estas últimas caíram após a entrada da China na OMC em 2001;iv) as políticas que estimulam a transferência de tecnologia por meio de mecanismo que requer a produção de conteúdo por empresas locais; e v)os múltiplos instrumentos que tem como objetivo criar empresas nacionais – privadas ou públicas – de classe mundial que possam concorrer com as empresas multinacionais.

Em suma, essas medidas em conjunto (reformas e políticas) – que conformaram uma estratégia nacional de desenvolvimento – foram os determinantes internos do crescimento da China.

Crescimento que já dura mais de trinta anos e vem provocando transformações estruturais na própria China e na economia mundial. Quais foram os impactos desse crescimento para a população chinesa? Como a ascensão da China vem transformando a economia mundial, a América Latina e o Brasil? Quais são as lições da China que podemos aproveitar para o desenvolvimento brasileiro? Essas são questões que tentaremos responder nos próximos artigos.


Notas

(1) PEYREFITTE, A. O império imóvel. Casa Jorge Editorial: Rio de Janeiro, 1997.

(2) Em 2011, a China tornou-se o país com a maior participação do valor adicionado da indústria de transformação mundial (20,7%) ultrapassando os Estados Unidos.

(3) Dentre os principais determinantes externos, podemos destacar: i) a aproximação entre os Estados Unidos e a China no final dos anos 1970; ii) a ofensiva comercial americana contra o Japão por meio do Acordo de Plaza em 1985; iii) o acesso da China na OMC em 2001; e iv) configuração do eixo sino-americano na década de 2000.

(4) As principais características das reformas foram: i) transformação da utilização da terra por meio do sistema de responsabilização por contrato familiar que possibilitou a comercialização do excedente agrícola; ii)  transição gradual de um sistema de preços controlado centralmente (determinado pelo planejamento centralizado) para um sistema misto de preços regulados, controlados e de mercado; iii)  reformulação do setor público por meio de reformas, privatizações de boa parte das empresas públicas e o fortalecimento de algumas empresas estatais que atuavam em setores estratégicos; iv) abertura ao mundo exterior por meio da criação das zonas economias especiais; e v) promoção de  empresas coletivas (empresas de vilas, etc.)



*Eduardo Costa Pinto é professor de economia política do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: eduardo.pinto@ie.ufrj.br


 FONTE:  Carta maior

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O jogo mudou


Podemos não estar percebendo, mas o jogo mudou. Nos últimos anos a sociedade e a economia brasileira ganharam novos players. Empresas transnacionais compraram empresas brasileiras ou criaram filiais no Brasil, como no caso das construtoras e incorporadoras imobiliárias, da indústria automobilística, da distribuição de alimentos, ou mesmo na área sucroalcooleira. E o comando da economia passa a atender, cada vez mais, aos interesses desses grandes players internacionais, deixando de lado ou num plano secundário qualquer traço de nacionalismo e a defesa dos milhões de pequenos e médios empresários brasileiros – rurais e urbanos −, que não conseguem competir com o Walmart, com a Brookfield, com o Carrefour ou a Cosan.

Por Silvio Caccia Bava


As empresas que exploram os recursos naturais, como mineração e petróleo; os serviços públicos, como eletricidade e telefonia; e agora, com as novas concessões, a infraestrutura, como portos, aeroportos, rodovias, estradas de ferro, metrô, ganharam musculatura com a associação a gigantes internacionais. E algumas empresas nacionais, com o apoio do BNDES, tornaram-se, elas próprias, transnacionais.

As empreiteiras de obras públicas agigantaram-se e internacionalizaram-se. São elas que estão realizando as obras da Copa, o plano de integração de infraestrutura da América do Sul – a IIRSA –, as mega-hidrelétricas na Amazônia. A Odebrecht tornou-se o maior grupo industrial do Brasil, com escritórios em 27 países e 250 mil empregados. Atua nas áreas de energia (gás, petróleo, nuclear), água, agronegócio, setor imobiliário, defesa, transportes, finanças, seguros, serviços ambientais, setor petroquímico. Em dez anos seu volume de negócios aumentou seis vezes.1

Os bancos brasileiros também passaram por um intenso processo de fusões e concentração. “O Itaú engoliu os bancos Francês e Brasileiro, Banestado, Banerj, Bemge, BEG, BBA, Fiat, Bank of Boston e City Card e promoveu a fusão com o Unibanco, que incorporou o Nacional, Dibes, Credibanco, Bandeirantes, BNL e Banorte. O Bradesco não ficou atrás, devorou os bancos BCN, Pontual, Baneb, Boavista, Mercantil de São Paulo, BCA, Banco Cidadão, BBV, Zogbi, BEM, BEC, Credireal, Alvorada, Excel, Econômico, Antônio de Queiroz, Crefisul e Banco Itamarati. O Santander comprou o Geral do Comércio, o Noroeste, o Banespa, o Meridional, o Bozano, o Real, o ABN Amro Bank, o Sudameris, o Holandês Unidos e o América do Sul. Por sua vez o HSBC ficou com o Bamerindus e Lloyds. Com a fusão Itaú/Unibanco aumenta a concentração bancária, 73% dos ativos financeiros (US$ 1,2 trilhão) ficarão com apenas cinco bancos: Itaú/Unibanco, Banco do Brasil, Bradesco, Santander/Real e Caixa Econômica Federal.”2 Para termos uma ideia do ritmo da concentração, a cada quatro anos o Itaú dobra de tamanho.

Em pouco mais de uma década (1999-2012), o Brasil quintuplicou suas exportações de commodities – soja, milho, carnes, açúcar-álcool, celulose de madeira, café, minério de ferro, bauxita-alumínio etc. −, passando de US$ 50 bilhões para US$ 250 bilhões.3 Também é novidade o peso que adquiriu o agronegócio, que alarga suas fronteiras sobre a Floresta Amazônica e zonas do Cerrado, e se expande para os países vizinhos e para a África. Com uma bancada parlamentar das mais ativas, o agronegócio conquistou novas concessões com a aprovação do Código Florestal e já se sente sua maior liberdade de ação com a constatação do aumento dos índices de devastação florestal na Amazônia. Também aqui não há lugar para a agricultura familiar e o pequeno proprietário.

O “modelo de desenvolvimento” brasileiro − se podemos chamar assim atividades que promovem a desigualdade, a concentração da riqueza e a exclusão social − também se internacionaliza e segue a tendência geral. A economia brasileira se integrou mais à economia global, passa a depender cada vez mais dessa dinâmica internacional, torna-se mais vulnerável às suas tendências. A sociedade brasileira é posta a serviço de um projeto que desconhece limites socioambientais: a lucratividade máxima dos players internacionais e a forma predatória como essas empresas atuam em qualquer território.

Graças a contribuições como as de David Harvey, passamos a compreender que o crescimento das cidades nos padrões atuais é parte constitutiva e indispensável desse modelo de desenvolvimento e acumulação, é aí que a riqueza se materializa em propriedades e o investimento no urbano alavanca a especulação imobiliária e a valorização patrimonial dos imóveis e terrenos que dela se beneficiam.

Quando as análises dos conflitos sociais nos mostram a dificuldade das manifestações organizadas pela cidadania em mudar políticas, deveríamos nos perguntar se essas formas de luta tradicionais combinam com o novo cenário e os novos atores que representam o capital, ou se as manifestações que se iniciaram em junho, também com traços globalizados, abrem um novo momento e novas esperanças. 


1-Anne Vigna, “Odebrecht, uma transnacional alimentada pelo Estado”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2013.
2-Ricardo (Big) e Eneida Koury, “Concentração do sistema financeiro prejudica”. Disponível em: <www.santosbancarios.com.br>.
3-Guilherme Delgado, “Pacto de poder com os donos da terra”, Le Monde Diplomatique Brasil, jul. 2013.


Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil


FONTE: Controvérsia