sexta-feira, 25 de julho de 2014

As posições revisionistas (oportunistas) do marxismo no Brasil de hoje


Por Anita Leocadia Prestes



Anita Leocadia Prestes
V. I. Lenin, em sua época, mostrou que as tendências revisionistas do marxismo, embora reconhecessem formalmente a teoria do socialismo cientifico, na realidade constituíam uma forma da luta da ideologia burguesa contra as ideias revolucionárias. Segundo o grande artífice da Revolução Russa de 1917, isso revelava a força do marxismo. “A dialética da história é tal – escrevia Lenin – que o triunfo teórico do marxismo obriga seus inimigos a disfarçar-se de marxistas. O liberalismo apodrecido internamente, tenta renascer sob a forma de oportunismo socialista” (1).

As palavras de Lenin revelam-se de uma atualidade surpreendente, quando se observa o panorama político da sociedade brasileira de hoje. Uma sociedade, cujas classes dominantes, representadas pelas elites políticas - ou seja, seus “intelectuais orgânicos”, segundo A. Gramsci (2), - tiveram sempre sua atuação marcada pelas soluções de conciliação entre os distintos grupos de interesses dos setores privilegiados. As massas populares, os trabalhadores, os oprimidos e explorados permanecendo alijados dessas soluções de cúpula. Ao referir-se ao “homem cordial”, Sérgio Buarque de Holanda (3) registrou esse traço manifesto das elites brasileiras, herança da nossa formação histórica, caracterizada pela permanência de quatro séculos de escravidão e da grande propriedade territorial.

Tais tradições da vida política brasileira, em que as soluções de compromisso entre grupos e/ou partidos representativos de distintas facções das classes dominantes constituíram uma forma de sobrevivência diante do aguçamento da luta de classes, determinaram um constante afastamento das massas populares de qualquer atuação significativa na resolução dos problemas nacionais. Condicionaram uma permanente impossibilidade de que protagonistas de perfil popular exercessem influência significativa nas decisões políticas adotadas pelos intelectuais orgânicos dos setores dominantes. Nesse sentido, tornou-se emblemática a frase pronunciada em 1930 por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, um dos grandes oligarcas de Minas Gerais: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”(4).

Os antecedentes apontados, presentes no universo político nacional, formaram o caldo de cultura propício ao advento no meio dos setores de esquerda e dos movimentos populares e dos trabalhadores de tendências oportunistas, ou seja, revisionistas do marxismo – uma teoria revolucionária em sua essência, segundo a qual seus adeptos não devem apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo (5).

Na medida em que as forças revolucionárias, no Brasil, foram constantemente perseguidas e derrotadas pelo poder do Estado a serviço dos interesses das classes dominantes, na medida em que a debilidade orgânica e ideológica dos setores de esquerda e dos comunistas foi uma constante – em grande parte resultante dessa perseguição implacável –, tornou-se possível o predomínio em larga escala da ideologia burguesa nos movimentos populares e dos trabalhadores. Estava aberto o caminho para o avanço do oportunismo no seio das esquerdas brasileiras, para as dificuldades de enfrentá-lo com êxito.

Se lançarmos um olhar retrospectivo sobre a história do Brasil a partir da independência de Portugal, verificaremos que as situações de crise vividas pelo país foram sempre solucionadas através de compromissos estabelecidos entre facções das classes dominantes. Os setores populares ficaram de fora, reprimidos com violência quando tentaram conquistar posições que lhes fossem propícias dentro dos novos esquemas de poder.

A independência brasileira resultou de um arranjo entre os senhores de escravos e de terras e a Coroa portuguesa, enquanto os radicais da época foram alijados e derrotados. Diferentemente do processo de libertação das colônias espanholas liderado por revolucionários como Simon Bolívar e San Martin, que, ainda no início do século XIX, decretaram a abolição da escravidão negra e da servidão indígena, juntamente com o estabelecimento de regimes republicanos, no Brasil, com a independência, se constituiu uma monarquia, que assegurou a manutenção da escravidão negra até o final desse século e a proclamação da República apenas em 1889. Processos estes conduzidos de maneira a impedir qualquer mudança de caráter revolucionário. No Brasil, não tivemos lutas revolucionárias vitoriosas; pelo contrário, quando ocorreram, foram derrotadas com violência pelas classes dominantes do país. A tão celebrada opção por transições incruentas, proclamada com insistência pelos intelectuais orgânicos a serviço dos interesses dominantes, reflete a debilidade dos movimentos populares no Brasil – fruto das condições históricas a que foram condenados -, incapazes de impor suas aspirações aos donos do poder.

Se dirigirmos nosso olhar para as vicissitudes do processo de transição do regime ditatorial implantando no Brasil em 1964 para a democracia hoje existente no país, verificaremos que, mais uma vez em nossa história, tivemos uma solução de compromisso entre facções das classes dominantes, entre os generais então à frente do Poder Executivo e os representantes da burguesia liberal (Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, etc.). Em 1979, mais uma vez em nossa história, os setores populares não tiveram força política para impor uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, como também, em 1984, não puderam conquistar as “diretas já”. Do pacto estabelecido entre as elites burguesas resultaram uma anistia restrita, extensiva aos torturadores, e eleições indiretas para a presidência da República. Apenas em 1989, garantidos os interesses do grande capital nacional e internacional pela realização de uma transição “segura”, as eleições diretas para presidente da República foram permitidas.

Também o processo constituinte que se seguiu ficou marcado pela conciliação entre o “poder militar” e os representantes burgueses com assento na Assembleia Constituinte de 1988, cujo resultado foi a tutela militar sobre os três Poderes do Estado, de acordo com o artigo 142 da Constituição então promulgada, conforme denunciado à época por Luiz Carlos Prestes:

Em nome da salvaguarda da lei e da ordem pública, ou de sua “garantia”, estarão as Forças Armadas colocadas acima dos três Poderes do Estado. Com a nova Constituição, prosseguirá, assim, o predomínio das Forças Armadas na direção política da Nação, podendo, constitucionalmente, tanto depor o presidente da República quanto os três Poderes do Estado, como também intervir no movimento sindical, destituindo seus dirigentes, ou intervindo abertamente em qualquer movimento grevista (...) (6).

A fundação do PT, no início dos anos 1980, alimentou a esperança de que afinal fora criada uma organização política capaz de conduzir os trabalhadores pelo caminho da sua emancipação social e política. Sem confiar nas lideranças operárias surgidas das grandes greves de 1978/79 no ABCD paulista, a burguesia mobilizou recursos poderosos para derrotar Luís Inácio da Silva, o Lula, em três eleições presidenciais consecutivas (1989, 1994 e 1998).

No decorrer desses anos, tornou-se evidente que inexistiam no Brasil forças sociais e políticas - o “bloco histórico” gramsciano (7) -, capazes de respaldar a eleição de um candidato à presidência efetivamente comprometido com os anseios populares e disposto a liderar um processo de transformações profundas da sociedade brasileira.

Ao mesmo tempo, tanto Lula quanto a direção do PT enveredavam pelo caminho da conciliação com setores da burguesia. Sem jamais terem adotado a teoria marxista como orientação ou considerado a realização de reformas sociais como caminho para a revolução, os líderes do PT optaram pelo reformismo. Diante da tradicional alternativa – reforma ou revolução -, a escolha foi clara. Tratou-se de buscar a reforma do capitalismo, de alcançar um capitalismo “sério” e distribuidor de benesses aos desassistidos, abandonando definitivamente qualquer proposta de mudança de caráter revolucionário e anticapitalista.

Contrariando o que haviam imaginado e proposto pensadores marxistas como Florestan Fernandes, o PT transformou-se numa versão brasileira da socialdemocracia europeia, com a diferença de que os conflitos sociais no Brasil, resultado de desigualdades extremas, não têm solução, mesmo que temporária, nos marcos do capitalismo, como aconteceu com o “estado do bem-estar social”, criação dos partidos socialdemocratas na Europa. Experiência esta hoje falida, como é do conhecimento geral.

Em 2002, ao candidatar-se pela quarta vez à presidência da República, Lula e as tendências que o apoiavam dentro do PT compreenderam que, para assegurar sua eleição, seria necessário fazer concessões ao grande capital internacionalizado, ou seja, aos setores da burguesia monopolista brasileira e internacional. A “Carta aos brasileiros” selou esse acordo. Lula e o PT tornaram-se confiáveis para a continuidade do sistema capitalista no Brasil, contribuindo para tal a nomeação de Henrique Meirelles para o Banco Central, o único gerente não estadunidense do então Banco de Boston, homem de confiança das multinacionais (8). Jamais no país os grandes empresários e banqueiros ficariam tão satisfeitos com um governo quanto com os dois quadriênios de Lula e, logo a seguir, com a eleição de sua “criação”, a presidente Dilma.

Uma vez no governo, os dirigentes do PT incluíram em sua base aliada partidos e agrupamentos políticos comprometidos com a continuidade das políticas neoliberais, que haviam constituído a essência dos compromissos assumidos com a “Carta aos brasileiros”. Estava fora de cogitação qualquer possibilidade de os novos governantes desenvolverem esforços voltados para a organização e a mobilização populares, tendo em vista a implantação de políticas favoráveis aos interesses dos trabalhadores e das grandes massas vitimadas pela exclusão social.

De acordo com a cartilha neoliberal, formulada pelas agências ligadas aos grupos monopolistas internacionais, aos setores populares seria destinada uma parte dos recursos provenientes dos lucros espetaculares desses grupos, através de políticas assistencialistas promovidas pelo Estado brasileiro, cujo objetivo principal nunca deixou de ser a garantia da paz social. Dessa forma, tentava-se evitar as convulsões sociais e garantir o apoio popular aos governos do PT e de seus aliados, assegurando a sucessão tranquila desses governantes a cada eleição. São distribuídas migalhas ao povo, enquanto as multinacionais obtêm lucros fabulosos e os dirigentes do PT e seus aliados garantem a reeleição para os principais cargos dos governos da República. Até agora esse esquema tem funcionado, embora, a partir de junho de 2013, haja começado a ser questionado pelas manifestações populares que se espalharam por todo o Brasil.

Embora o assistencialismo seja bastante eficaz na garantia da continuidade das políticas neoliberais e da manutenção do sistema capitalista, a orientação reformista dos governos de Lula e Dilma não pode prescindir do discurso ideológico para justificar sua atuação. Não basta apelar para a simbologia de um operário metalúrgico e de uma mulher na presidência da República pela primeira vez na história do Brasil.

Torna-se necessário justificar o presente apelando para o passado e falsificando a história. Busca-se no passado a justificativa para o presente. Tenta-se apresentar os atuais governantes como continuadores das grandiosas lutas do passado, como herdeiros dos líderes revolucionários do passado, como paladinos de ideias avançadas e progressistas. Torna-se conveniente disfarçar-se de marxistas para melhor encobrir a orientação antipopular da política dos atuais governantes.

É assim que intelectuais e dirigentes tanto do PT quanto do PCdoB, disfarçados de marxistas, “inventam” uma história das lutas do povo brasileiro conforme seus desígnios inconfessáveis. Segundo a propaganda amplamente difundida pelo PCdoB, estamos diante do “partido do socialismo”, que, entretanto, realiza políticas que favorecem o agronegócio e a entrega do petróleo brasileiro às multinacionais. Um partido que falsifica sua própria história, ao negar seu surgimento, em 1962, resultado de uma cisão do PCB, e datá-lo de 1922, quando foi fundado o Partido Comunista (Seção Brasileira da Internacional Comunista). Em 2012, o PCdoB comemorou os 90 anos de um partido que não é o seu.

Da mesma forma, deputados, senadores, prefeitos e governadores, assim como dirigentes dos partidos governistas, se apropriam da memória de lideranças revolucionárias como Luiz Carlos Prestes, Olga Benario Prestes, Gregório Bezerra etc., para tentar melhorar sua imagem desgastada e seu crescente desprestígio diante das novas gerações. Para fazê-lo com algum sucesso precisam falsificar a história de luta desses homens e mulheres, admirados por seu heroísmo, distorcendo sua atuação e esvaziando-a de qualquer conteúdo revolucionário. Tratam de transformar esses lutadores admiráveis em figuras aceitáveis até mesmo pelas classes dominantes, que eles sempre combateram.

Pudemos assistir recentemente à demagógica devolução do mandato de senador a Luiz Carlos Prestes, promovida pelos parlamentares dos atuais partidos governistas, assim como dos mandatos dos deputados comunistas cassados em 1948. Se Prestes estivesse vivo, jamais aceitaria as homenagens hipócritas desses senhores, cuja atuação política foi por ele combatida severamente até falecer em 1990. Outros exemplos desse tipo poderiam ser citados.

Neste ano, em que se completam 90 anos do início da Coluna Prestes, dirigentes dos partidos governistas “descobriram” nesse episódio glorioso das lutas do nosso povo um valioso filão a ser explorado para melhor se disfarçarem de avançados, de progressistas ou até mesmo de marxistas, como é o caso dos políticos do PCdoB. Organizam homenagens no Congresso Nacional, em assembleias estaduais e câmaras municipais, assim como caravanas pelo país, com o objetivo de manipular a história dessa epopeia brasileira, cujos feitos mal conhecem, difundido versões falsas a seu respeito e retirando desse movimento o seu conteúdo de luta revolucionária contra o poder oligárquico então existente.

A Coluna Invicta, como também ficou conhecida na época, é apresentada como um episódio que merece a unanimidade da aprovação nacional. Fala-se, inclusive, na sua “institucionalização”, o que significa torná-lo mais uma data a ser incluída no calendário de festejos nacionais. Um episódio transformado em celebração, desprovida de qualquer caráter de luta, e aplaudido por todos os brasileiros, indistintamente da posição de classe. Estamos diante de uma nova tentativa da transformar Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, numa liderança de todos os brasileiros, falsificando sua memória de líder dos trabalhadores, dos explorados e dos oprimidos; jamais dos exploradores e dos donos do capital.

Diante da atuação oportunista (revisionista do marxismo), dirigida no sentido de reformar o capitalismo em vez de liquidá-lo, diante da falsificação da história das lutas e da memória das lideranças revolucionárias do passado, com o objetivo de justificar tal política reformista, o legado de Luiz Carlos Prestes adquire indiscutível atualidade.

Para Prestes, a emancipação econômica, social e política dos trabalhadores brasileiros deveria ser obra deles próprios. Para que isso se tornasse possível, considerava que os verdadeiros revolucionários teriam que contribuir para a mobilização, a organização e a conscientização dos diferentes setores populares, assim como para o surgimento de novas lideranças e novas organizações partidárias efetivamente comprometidas com a solução radical dos graves problemas nacionais.

O legado de Luiz Carlos Prestes, ao apontar para a necessidade de considerar diferentes formas de aproximação da conquista de um poder revolucionário (9), que venha a abrir caminho para a revolução socialista, constitui uma contribuição valiosa para as forças de esquerda que hoje estão empenhadas na luta por transformações profundas da sociedade brasileira, na luta por mudanças que não sirvam aos desígnios dos políticos das classes dominantes e dos seus aliados oportunistas, interessados em que “tudo mude para que tudo permaneça como está”.

A crítica das posições revisionistas do marxismo e das falsificações da história dos revolucionários brasileiros constitui aspecto fundamental da luta geral contra o sistema capitalista e a favor da revolução socialista.

Notas:

1 - LENIN, V. I. “Las vicisitudes históricas de la doctrina de Carlos Marx” (publicado con la firma de V.I. el 1 de marzo de 1913 em el num. 50 de Pravda), in LENIN, V. I. Contra el revisionismo. Moscu, Ed. en Lenguas Extranjeras, 1959, p. 158; destaques do autor. (Tradução do espanhol para o português de PRESTES, A.L.).
2 - GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Vol. 2, 2001, p.15-25.
3 - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 14ª ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1981.
4 - ABREU, Alzira Alves de e BELOCH, Israel et al. (coord). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. 2ª ed. V. I. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2001, p. 1115.
5 - MARX, C. “Tesis sobre Feuerbach”, in C. MARX & F. ENGELS. Obras Escogidas en tres tomos. T. I, Moscú, Ed. Progreso, 1976, p. 7-10.
6 - PRESTES, Luiz Carlos, “Um ‘poder’ acima dos outros”, Tribuna da Imprensa, RJ, 28/9/1988.
7 - Cf. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. 2ª ed. V. 1. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 2001, p. 238.
8 - Henrique Meirelles permaneceu à frente do Banco Central durante os dois quadriênios dos governos Lula.
9 - Cf. PRESTES, Anita Leocadia, “O legado de Luiz Carlos Prestes e os caminhos da revolução socialista no Brasil”,

Anita Leocadia Prestes é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes

Originalmente publicado no Instituto Luiz Carlos Prestes - www.ilcp.org.br

FONTE: Correio da Cidadania

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Boff: “Piketty está certo, democracia e capitalismo não convivem”


Para teólogo, "O Capital no século XXI" acerta quando diz que 
"a desigualdade não é acidental, mas o traço característico do sistema"


Por Leonardo Boff, no Brasil de Fato


Está causando furor entre os leitores de assuntos econômicos, economistas e principalmente pânico entre os muito ricos um livro de 700 páginas escrito em 2013 e publicado em muitos países em 2014. Tranasformou-se num verdadeiro best-seller. Trata-se de uma obra de investigação, cobrindo 250 anos, de um dos mais jovens (43 anos) e brilhantes economistas franceses, Thomas Piketty. O livro se intitula O capital no século XXI(Seuil, Paris 2013). Aborda fundamentalmente a relação de desigualdade social produzida por heranças, rendas e principalmente pelo processo de acumulação capitalista, tendo como material de análise particularmente a Europa e os EUA.

A tese de base que sustenta é: a desigualdade não é acidental, mas o traço característico do capitalismo. Se a desigualdade persisitir e aumentar, a ordem democrática estará fortemente ameaçada. Desde 1960, o comparecimento dos eleitores nos EUA diminuiu de 64% (1960) para pouco mais de 50% (1996), embora tenha aumentado ultimamente. Tal fato deixa perceceber que é uma democracia mais formal que real.

Esta tese sempre sustentada pelos melhores analistas sociais e repetida muitas vezes pelo autor destas linhas, se confirma: democracia e capitalismo não convivem. E se ela se instaura dentro da ordem capitalista, assume formas distorcidas e até traços de farça. Onde ela entra, estabelece imediatamente relações de desigualdade que, no dialeto da ética, significa relações de exploração e de injustiça. A democracia tem por pressuposto básico a igualdade de direitos dos cidadãos e o combate aos privilégios. Quando a desigualdade é ferida, abre-se espaço para o conflito de classes, a criação de elites privilegiadas, a subordinação de grupos, a corrupção, fenômenos visíveis em nossas democracias de baixíssima intensidade.

Piketty vê nos EUA e na Grã-Bretanha, onde o capitalismo é triunfante, os países mais desiguais, o que é atestado também por um dos maiores especialistas em desiguldade Richard Wilkinson. Nos EUA, executivos ganham 331 vezes mais que um trabalhador médio. Eric Hobsbown, numa de suas últimas intervenções antes de sua morte, diz claramente que a economia política ocidental do neoliberalismo “subordinou propositalmenet o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB, o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inequalitário”.

Em termos globais, citemos o corajoso documento da Oxfam intermón, enviado aos opulentos empresários e banqueiros reunidos em Davos nos janeiro deste ano como conclusão de seu “Relatório Governar para as Elites, Sequestro democrático e Desigualdade econômica”: 85 ricos têm dinheiro igual a 3,57 bihões de pobres do mundo.

O discurso ideológico aventado por esses plutocratas é que tal riqueza é fruto de ativos, de heranças e da meritocracia; as fortunas são conquistas merecidas, como recompensa pelos bons serviços prestados. Ofendem-se quando são apontados como o 1% de ricos contra os 99% dos demais cidadãos, pois se imaginam os grandes geradores de emprego.

Os prêmios Nobel, J. Stiglitz e P. Krugman têm mostrado que o dinheiro que receberam do Governo para salvarem seus bancos e empresas mal foram empregados na geração de empregos. Entraram logo na ciranda financeira mundial que rende sempre muito mais sem precisar trabalhar. E ainda há 21 trilhões de dólares nos paraísos fiscais de 91 mil pessoas.

Como é possível estabelecer relações mínimas de equidade, de participação, de cooperação e de real democracia quando se revelam estas excrecências humanas que se fazem surdas aos gritos que sobem da Terra e cegas sobre as chagas de milhões de co-semelhantes?

Voltemos à situação da desigualdade no Brasil. Orienta-nos o nosso melhor especialista na área, Márcio Pochmann (veja também Atlas da exclusão social – os ricos no Brasil, Cortez, 2004): 20 mil famílias vivem da aplicação de suas riquezas no circuito da financeirização, portanto, ganham através da especulação. Continua Poschmann: os 10% mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda riqueza nacional. Enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%”(Le Monde Diplomatique, outubro 2007).

Segundo dados de organismos econômicos da ONU de 2005, o Brasil era o oitavo país mais desigual do mundo. Mas graças às políticas sociais dos últimos dois governos, diga-se honrosamente, o índice de Geni (que mede as desigualdades) passou de 0,58 para 0,52. Em outras palavras, a desigualdade que continua enorme, caiu 17%.

Piketty não vê caminho mais curto para diminuir as desigualdades do que a severa intervenção do Estado e da taxação progressiva da riqueza, até 80%, o que apavora os super-ricos. Sábias são as palavras de Eric Hobsbawn: “O objetivo da economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população; o crescimento econômico não é um fim em si mesmo, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas”.

E como um gran finale a frase de Robert F. Kennedy: ”o PIB inclui tudo; exceto o que faz a vida valer a pena.”


FONTE: Outras Palavras

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Política de Conselhos Petista


Por Fábio Bezerra


Mais do Mesmo do Engodo da Democracia Burguesa

Às vésperas de completar um ano daquela que foi a maior manifestação de massas da História recente brasileira, conhecida como “jornadas de junho” e a um mês do início oficial da campanha eleitoral, o Governo Federal editou, através da Casa Civil, o Decreto nº 8243/14 que trata da promoção de uma Política Nacional de Participação Social- PNPS, visando modernizar e “democratizar” as relações de representatividade e poder entre a sociedade civil e o Estado.

De imediato, um conjunto de entidades ligadas ao Governo saiu em defesa de tal iniciativa e até mesmo adversários políticos atuais comentaram tal iniciativa como se fosse um “ato acertado e necessário” do Governo.

Em proporção ainda maior, as tradicionais forças conservadoras e seus veículos e agentes de (des) informação, também saíram em campo para bradar aos quatro ventos sobre o que representaria, segundo eles, um novo golpe institucional e oportunista do Governo, às vésperas das eleições, e que levaria ao descrédito os poderes da república – como se o congresso e o judiciário já não estivessem mais do que desgastados – e a “bolivarização” da democracia brasileira.

Entre fatos e boatos, sobre as reais intenções que motivaram a publicação do referido decreto, é importante salientar que, desde o final de 2013, o Governo vem preparando ações em diversas frentes para ora combater, ora se adaptar aos fatos e tentar controlar os impulsos e tendências da atual conjuntura brasileira. Recusa-se, de fato, a aceitar a verdade histórica que aponta para o esgotamento do modelo social-liberal, movido pela falsa lógica de inserção de parcela da população ao mercado via assistencialismo, consumismo e consequente endividamento público e a colaboração de classe, que não conseguiu superar contradições seculares, presentes nas relações sociais regidas pelas relações capitalistas excludentes.

Um bom exemplo dessa tática, que configuro como dual (repressão e cooptação), está na publicação, em dezembro de 2013, da Portaria da Lei e da Ordem, que remodelou todo o aparato de repressão do Estado, instituindo ações conjuntas entre as Forças Armadas, polícias locais e os Sistemas de Vigilância e Informação, através de práticas de espionagem, detenção prévia, suspensão de direitos, perseguição e criminalização de movimentos sociais, organizações e ativistas de oposição ao Governo e ao sistema, sob a alegação de serem Forças Oponentes à ordem e à sociedade, tratados como “terroristas”.

Dual pois, se com uma mão o governo procurou “dar no ferro”, atendendo aos clamores de setores mais retrógrados da sociedade, os quais compartilham interesses econômicos no Estado e com o atual governo petista, por outro, agora, o governo ”dá na ferradura”, buscando disciplinar e conduzir ordeiramente - lê-se, de forma leniente - os movimentos sociais, frente às tendências da luta de classes e as contradições em curso.

As Jornadas de Junho colocaram na ordem do dia muito mais do que os anseios por mudanças na administração pública, as críticas ao caos da mobilidade urbana, a falência dos serviços públicos, sucateados criminosamente por governos neoliberais, a corrupção ativa e o desrespeito aos mais elementares direitos previstos em lei. As jornadas colocaram em cheque o atual modelo de representatividade política e as respectivas instituições ou atores políticos tidos, nesse cenário, como referenciais e/ou mediações legítimas de poder.

Esse fato, perigoso aos olhos daqueles que temem uma radicalização da luta direta das massas e a possível transformação de um entendimento imediatista (na sua capacidade interpretativa) e espontaneísta (no julgamento e tomada de ação) em interpretações e ações conscientes e consequentes - enquanto expressão da evolução da consciência de classe-, mereceria uma ação também direta e imediata por parte do Governo, nesse sentido, sob outras formas e outra frente.

A forma encontrada, nesse caso, não é a repressão, mas sim a reificação da Política sob a égide das representações da democracia burguesa, como veículo formal para acoplar e acomodar “todas” as variantes e atores políticos em disputa, sob o compromisso do reconhecimento do Estado em relação às suas pautas, desde que estes agrupamentos, movimentos e ativistas, por sua vez, reconheçam o Estado e seus Governos como legítimos árbitros e mediadores dos conflitos e possíveis resoluções no âmbito das esferas de ação estatal - sempre “dentro da Lei e da Ordem”.

E a proposta de frente de ação, enquanto forma para se pactuar tal compromisso político, são os conselhos de políticas públicas, teoricamente menos burocráticos do que as tradicionais formas de representação republicana, mais abrangentes e representativas.

O Decreto em si, logo no artigo 1º, define como objetivos do PNPS: “(…) fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, o que leva a entender esse compromisso entre as partes como o selo de garantia da proposta. Por sua vez, os referidos conselhos não possuem os poderes deliberativos sobre o orçamento, ou mesmo a consecução de um projeto, tampouco sobre a administração direta dos órgãos e das instâncias de governo, responsáveis pela implementação de quaisquer políticas públicas.

São conselhos consultivos que poderão, de acordo com o artigo 5º, auxiliar na formulação, na execução, no monitoramento e avaliação dos programas de políticas públicas, desde que, “respeitadas as especificidades de cada caso”.

Outro ponto contraditório e curioso é o fato de que caberá à Secretária-Geral da Presidência da República a incumbência de elencar quais são os critérios e condições necessárias para que os movimentos sociais institucionalizados, ou não, possam se enquadrar como participes dos conselhos, em que instância for. Dessa forma, cabe ao Governo decidir quem irá jogar o jogo e não temos dúvidas de que as condições serão aquelas que amarram os participantes às decisões dos conselhos, digo, aos interesses estratégicos do Governo.

No art. 3º, que trata das diretrizes gerais da PNPS, o inciso VII é esclarecedor quanto a um dos papeis que deve cumprir tal Decreto, entendido enquanto política de Estado, ou seja, de “ampliação dos mecanismos de controle social”. Nesse pequeno e quase desconexo trecho, reside todo o sentido ideológico e metodológico desse programa, que visa, além de formatar e disciplinar as ações e interpretações dos movimentos sociais, institucionalizar a lógica da negociação programada, através de acordos possíveis, que retirem das ruas ou ao menos esvaziem as reivindicações mais contestadoras e nocivas à lógica da acumulação e domínio do capitalismo, tentando adestrar e impor, como veículo oficial de diálogo, um mecanismo que por si pretende limitar o que vem crescendo em todo o país: a capacidade de insubordinação e de questionamento, cada vez mais crítico em relação ao Estado e às contradições da sociedade brasileira.

Não é à toa que, mais à frente, antes do artigo 15, o Parágrafo Único defende como modelo para as mesas de diálogo entre as relações de trabalho, a divisão tripartite (trabalhadores, patrões e governo), modelo pelo qual o sindicalismo de resultados oficializou, conjuntamente com o capital, o que seria a esfera ideal de mediação e resolução dos conflitos trabalhistas, em uma proporção sempre desfavorável aos trabalhadores, pois, do ponto de vista de classe, governos e patrões possuem um mesmo ideário e papel político. Como de praxe, caberá ao Governo decidir quem representará os trabalhadores nessas mesas tripartites (não faltarão sindicatos e centrais pelegas para se candidatarem ao posto).

A estrutura de funcionamento do PNPS estabelece uma hierarquia que vai do Conselho de Políticas Públicas, passando pela Comissão de Políticas Públicas, Conferência Nacional e Ouvidoria Pública Federal. Toda essa estrutura possui interconexões e ao mesmo tempo funções específicas, integrando o Sistema Nacional de Participação Social, conjuntamente com a Secretaria-Geral da Presidência, que, por sua vez, indicará a composição dessas instâncias. Mas ilude-se quem pensa que a participação é imediata em todas as esferas e de forma direta e autônoma.

Nesse aspecto, a proposta demonstra a falácia democratista e cai a máscara da autonomia desses conselhos em relação ao Estado e ao Governo, pois, de acordo com o art. 15, caberá aos Fóruns Interconselhos a definição das políticas ou programas a serem objeto de debate, formulação e acompanhamento e a “definição dos conselhos e organizações da sociedade civil a serem convidados pela sua vinculação ao tema”.

Ou seja, caberá a um Fórum que reunirá todos os Conselhos - escolhidos, inicialmente, pelo próprio Governo, a dedo - a definição do que será discutido e acompanhado e a definição dos demais conselhos e organizações da sociedade que deles deverão participar! Isto é a terceirização direta, através de um superconselho chamado de Fórum dos Conselhos, das indicações dos quadros e dos agraciados do Governo e de seus aliados, para a composição dos órgãos que irão “discutir”, “planejar” e “acompanhar” os programas sociais do próprio Governo!

Sem sombra de dúvidas, muitos movimentos sociais e organizações populares poderão se iludir com esse modelo, mas estarão apenas cumprindo a triste função de coadjuvantes em um teatro com papeis e script já definidos.

Em suma, a proposta tão atacada pelos setores de oposição ao PT não é em si nenhuma ameaça à democracia burguesa, tampouco subverte a ordem de modo a elevar os movimentos sociais institucionalizados ou não à condição de potenciais agentes de disputa política na condução do Estado. E não há qualquer comparação possível com a chamada bolivarização, menos ainda com a sovietização das relações de poder!

Na realidade, de um lado, o governo utiliza astutamente, às vésperas da eleição e às vésperas da possibilidade de mais uma onda de protestos populares contra o legado da Copa no Brasil, a proposta de criação de uma sistemática estrutura de Conselhos de Políticas Públicas, também como forma de agitação e propaganda eleitoreira, tentando iludir diversos setores da sociedade que ainda acreditam na “teoria de um governo em disputa” ou que esperam mais ações populares e democráticas. De outro, o Governo cria, com esse mecanismo, uma possibilidade de institucionalização da nova configuração do cenário dos movimentos sociais e conexão da sociedade via redes sociais, de modo a seduzir e cooptar esses atores e veículos de interação, sob a mesma lógica da manutenção da ordem do capital.

Tais setores compreenderam os reais interesses desses conselhos, o que potencializará o discurso eleitoreiro de Dilma e o reforço da influência do PT na estrutura do Estado no futuro próximo. Essa medida, de fato, por sua vez, resolve outra situação contraditória aos interesses do atual governo petista, isto é, a sempre difícil e muitas vezes tensa relação com o Congresso, pois, através dos conselhos, criar-se-ia um outro mecanismo de diálogo com a sociedade, que necessariamente não precisaria passar pelas barganhas com deputados e senadores de partidos que não estão na base aliada com o PT.

De tabela, poderá ser uma forma eficaz de atrelamento consentido e até mesmo uma nova forma de correia de transmissão ideológica do Governo junto à sociedade, desde que haja rejeição à velha estrutura de representação subserviente, que as tradicionais entidades pelegas da burocracia sindical ou estudantil já não atendem mais.

Nos últimos anos, os comunistas do PCB vêm defendendo a constituição de conselhos populares em todas as esferas de atuação do Estado, como forma de inverter o modus operandi da democracia burguesa pautada em uma representatividade formal que exclui os interesses de classe dos trabalhadores da esfera do poder político do Estado e de suas atribuições. O PCB defende o Poder Popular, com autonomia total dos movimentos populares e das organizações dos trabalhadores frente ao Estado e aos patrões.

O Decreto dos Conselhos Políticos, como ficou conhecido, é mais uma tentativa petista de iludir e instrumentalizar as massas, veiculando a falsa ideia de que estas participarão de fato da elaboração e consecução de políticas públicas que possam resolver problemas sociais mais sensíveis como o caos na saúde e na educação, a violência, a mobilidade urbana, entre outros.

O referido Decreto é uma clara tentativa de formalização institucional das relações sociais e disputas políticas, de modo a associar os anseios de mudanças e as tensões presentes na luta de classes a uma falsa ideia de democracia ativa e direta.

Não significa que os movimentos sociais não devam participar de conselhos setoriais por princípio, por estarmos em uma sociedade de classes ou por serem conselhos ligados à estrutura do Estado; ao contrário, todas as mediações possíveis que possam levar a luta dos trabalhadores (as) a um patamar mais maduro de identidade política e consciência de classe devem ser valorizados, enquanto possibilidades de acúmulo de forças e disputa por hegemonia.

Por sua vez, o fato de ser um conselho amplo e que possibilite algum diálogo com o Poder instituído em Governos locais e/ou no próprio Estado não significa necessariamente que essas possibilidades poderão ser alcançadas a médio ou longo prazo, cabendo sempre refletir sobre os limites e as condicionantes que irão reger a participação dos trabalhadores (as) nesses espaços.

Todo esse processo reflete o desgaste do atual modelo de representação política, elitista em sua essência e viciado em eleições antidemocráticas, atrelado a um Congresso repleto de aves de rapina, de lacaios do imperialismo, lobistas ou traidores oportunistas.

O modelo de democracia participativa e direta, de modo que os trabalhadores (as) possam exercer de fato a direção política da sociedade, deve se dar em Conselhos Populares, que possam conquistar espaços e meios legítimos para que seus interesses sejam defendidos com a necessária independência e autonomia em relação aos limites da ordem institucional, de modo a construir, na luta ideológica e no enfrentamento ao modo de produção capitalista, um novo ideário de organização social e política para a sociedade, ideário esse que chamamos de PODER POPULAR e que não será constituído por Decretos, nem deverá ser instrumento de manipulações e ilusões de classe com cosméticos populistas, operados sobre as velhas estruturas da Democracia Burguesa.


Fábio Bezerra é Professor de Filosofia e História.

Membro do Comitê Central do PCB

FONTE: Portal do PCB

sábado, 12 de julho de 2014

A democracia participativa e os conselhos municipais




Novos canais para participação social no Estado são criados, enquanto os antigos ainda permanecem desconhecidos por grande parte da população


Por Lucas Reginato

Quando milhares de jovens do Brasil inteiro foram às ruas em junho de 2013, muitos especialistas atentaram para uma “crise de representatividade”. Sem espaços de interação direta com o Estado, aos manifestantes restaram as passeatas para demonstrar descontentamento com nosso atual sistema político.

A Constituição de 1988, contudo, fundamentou canais de participação civil no Estado. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, diz parágrafo único do artigo 1º, para desconsolo de quem hoje acha que participação popular é sinônimo de bolivarianismo.

A figura do conselho de política pública foi criada em meio ao debate da redemocratização, e a própria Assembleia Nacional Constituinte criou mecanismos para receber colaborações da população. Mas mesmo antes disso o Brasil já tinha algumas experiências de gestão compartilhada, como o Conselho Consultivo de Administração de Saúde Previdenciária (Conasp), implementado em 1981, e o Conselho Nacional de Saúde, criado a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986.

Hoje, dos 5.570 municípios brasileiros, apenas 17 não possuem um Conselho Municipal de Saúde, necessário para recebimento do repasse do SUS e fundamental para fiscalização das políticas públicas. Em todo o país, segundo dados do IBGE, são 3.784 Conselhos Municipais de Meio Ambiente e 976 dos Direitos da Mulher. Isto para citar alguns exemplos, porque não há regulamentação que delimite o tema a ser abordado por um conselho.

A importância dos conselhos, contudo, diminui diante da falta de informação. “Quando descobri que existiam os conselhos me senti roubada”, brinca Milena Franceschinelli, que iniciou campanha para que as pessoas ocupem esses espaços em suas cidades. Há seis anos ela conheceu o funcionamento do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Paulo, e desde então acompanha fóruns deste tipo. Hoje, ela representa a Prefeitura de Ubatuba no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e Pesqueiro e planeja um programa de rádio para divulgar as ações dos conselhos na cidade.

Panorama histórico


Conselho Nacional de Saúde, criado a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, é uma  experiência de gestão compartilhada.  (foto: http://wwwsaudedafamilia.blogspot.com.br)


Como instrumentos de participação social no Poder Executivo, os conselhos estão inseridos em um debate histórico sobre modelo de Estado. “Desde a Segunda Guerra Mundial, a estrutura do Estado moderno impede o cidadão de chegar até os processos de decisão”, contextualiza o cientista político Rudá Ricci. “É uma estrutura fragmentada, e as teorias, principalmente a alemã, diziam que a tomada de decisão não pode ser contaminada por paixões e sofrimentos humanos, porque tinha que ser equilibrada. Ou seja, ela tinha que estar acima dos interesses privados. Isso criou uma burocracia e uma tecnocracia frias, e vários estudiosos provaram que essa estrutura gerou uma política à parte da história do país. Criou uma estrutura própria e um segmento social que dirige os interesses que parecem públicos, mas são privados.”

“Pela direita, nos anos 90, começou uma discussão sobre a reforma do Estado, e o Fernando Henrique Cardoso trouxe esse debate, com um modelo chamado ‘Estado gerencial’”, continua o professor. “Pela esquerda, veio o que autores chamam de ‘Estado societal’, que é esse participacionismo.”

Ricci defende os espaços de participação porque, segundo ele, “a única forma de termos paz social é se o Estado conseguir antecipar os conflitos”. Para isto também servem os conselhos, que podem ter caráter consultivo, deliberativo, normativo ou fiscalizador, a depender da forma como foram concebidos em lei.

Crise de representatividade

“O povo, unido, sem bandeira de partido”, clamavam os manifestantes de junho de 2013. A insatisfação com nosso espectro partidário, e, consequentemente, com o sistema político, foi logo diagnosticada como uma “crise de representatividade”. “Estamos vendo protestos na rua porque não há canal de participação”, argumenta Ricci.

Já Milena apresenta uma outra versão – a de que até há canais de participação, mas que falta o engajamento da população. “Eu brinco que, em junho do ano passado, se as pessoas soubessem dos conselhos, iriam ocupá-los para deliberar. Eu sou favorável às manifestações, mas a gente não tem um encaminhamento prático.”

Quem resolveu ocupar um conselho em 2008 foi a Associação da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo, que indiciou Pierre Freitaz para representar a entidade no então recém-criado Conselho Municipal da Juventude. Ele lamenta, contudo, que o caráter apenas consultivo do conselho tenha limitado as ações. “A gestão [de Gilberto] Kassab [ex-prefeito da capital] não tinha abertura para que decidíssemos as coisas em conjunto. Era um contexto mais autoritário que democrático. Isso acabou fragilizando o conselho”, lembra.

“Naquele momento, o conselho foi delimitado por conta da construção política que tinha a gestão municipal em relação à participação social. A gente não conseguiu influenciar muito nas ações da prefeitura. Isso acabou desanimando conselheiros pelo contexto burocrático imposto.”

Milena, entusiasta, oferece novo contraponto: “Eu digo que, se o conselho é deliberativo ou consultivo, depende de como as pessoas participam. Porque pode não ser impositivo, mas se tem uma orientação sobre determinado assunto, você tem o poder na mão”. Segundo ela, é possível criar condições favoráveis a partir da mobilização. “A lei não é fechada, está aí para ser alterada”, diz. “Quanto mais movimentação, quanto mais repercussão, mais força política.” Ela lembra que as ações do conselho devem partir dos conselheiros e da sociedade civil, porque “conselho não garante o voto de ninguém”.

Decreto 8.243/2014

No dia 23 de maio, Dilma Rousseff assinou o decreto que instituiu a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil.” Na prática, o decreto consolida a participação social como método de governo ao fortalecer instâncias como conselhos e conferências, além de criar fóruns interconselhos.

Desgovernados pela ânsia oposicionista, a grande imprensa atacou o decreto sem saber direito para onde atirar. Em reportagem no dia 3 de junho, a revista Veja chegou a dizer que o decreto foi “assinado à surdina” pela presidenta, que, na verdade, assinou o documento depois da Arena de Participação Social, um seminário internacional que aconteceu entre os dias 21 e 23 de maio em Brasília para discutir o tema.

Já o jornal O Estado de S. Paulo provou que não está muito compromissado com a verdade, ou então que está desinformado, porque concluiu o editorial “Mudança de regime por decreto”, de 29 de maio, dizendo que “a mensagem subliminar em toda essa história é a de que o Poder Legislativo é dispensável”. Ignora, contudo, que os conselhos e outras instâncias criadas dizem respeito ao Poder Executivo, e em nada substituem o Congresso Nacional.

Mas a principal “acusação” foi a de que o decreto colocaria o país “na rota do bolivarianismo”. As afirmações irritaram Rudá Ricci – “eu nunca vi tanto articulista ignorante”. “Não tem nada de bolivariano. Eles desconsideram que nós já temos uma legislação, que está dispersa. Esse decreto cria um marco regulatório que todos os especialistas no Brasil vêm pedindo há pelo menos 15 anos.”

As críticas da imprensa repercutiram na oposição da Câmara dos Deputados, e dois parlamentares do DEM, Mendonça Filho (PE) e Ronaldo Caiado (GO), entraram com um Projeto de Decreto Legislativo para sustar a iniciativa presidencial. A tentativa não foi bem-recebida pelo presidente da casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que, ao ser perguntado do porquê não colocaria a proposta em votação, foi sucinto – “porque eu não quero”, respondeu, segundo reportagem da Agência Brasil.

De acordo com os opositores, o decreto é perigoso porque, ao abrir espaço para participação social, o governo pode aparelhar-se com os movimentos sociais, “massa de manobra do PT”, segundo a Veja. “Essa fala me irrita”, desabafa Ricci, “porque questiona que cidadãos sejam filiados a partidos. Movimento social não está ligado só a partido, e se estiver não tem problema nenhum.”

“O método que está no decreto é o mesmo que a gente já usa para definir os conselhos que já existem”, continua ele. “Esses articulistas têm que estudar as leis do Brasil. Eles acham que o FHC implantou o regime bolivariano? Porque foi ele quem criou! Essas leis foram criadas no governo do Fernando Henrique Cardoso.”

Mas, então, por que os meios de comunicação, e a oposição, se voltaram tão ferozmente contra o PNPS e o SNPS? Milena tem um palpite: “É medo, porque esse tipo de ferramenta realmente muda o país”.

(Crédito da foto da capa: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr)


FONTE: Revista Forum Semanal

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A relevância da análise de classe no Brasil

                                                                                                                            
O mundo do trabalho atual é, aparentemente, tão complexo, fragmentado e multifacetado, que descrever e analisar suas dinâmicas a partir de uma teoria geral sobre classes sociais pode parecer um exercício infrutífero. Diante disso, alguns teóricos decretaram “a morte das classes”. Para eles, o conceito foi pertinente para a análise das relações de produção no capitalismo industrial, mas, com o desenvolvimento das tecnologias da informação e da economia de serviços, a partir da década de 1970, se tornou obsoleto.


Por João Alexandre Peschanski


Sem chegar ao extremo de rejeitar o próprio conceito, correntes sociológicas depenaram a noção de classe social de muito de seu valor analítico e explicativo, tornando-o uma ferramenta meramente descritiva. Aqui, a classe social reúne atributos individuais salientes em dada sociedade  que afetam as oportunidades e escolhas das pessoas numa economia de mercado, como educação, etnia, inteligência, gênero, motivação etc. Nessa corrente, a noção de classe é usada para descrever grupos que têm certos atributos em comum, sem pressupor que esse aspecto tenha valor explicativo e sem que haja uma relação necessária entre as diferentes classes.

Uma segunda corrente agrega à primeira, que põe o foco em atributos, um mecanismo explicativo das desigualdades socioeconômicas: a exclusão de indivíduos e grupos de posições privilegiadas por meio de algum tipo de restrição social. Um exemplo é a proteção  de nichos de trabalho com a exigência de alguma qualificação especial ou diploma. Essa perspectiva é relacional, na medida em que os benefícios associados a ter uma posição de classe privilegiada – melhores salários, condições de vida, status – estão vinculados à exclusão de indivíduos e grupos.

Estudos recentes sobre a composição de classe no Brasil oscilam entre a primeira e a segunda corrente. Afirmam que a classe média é, hoje, a maior classe brasileira. Definem-na de acordo com o nível de renda – geralmente, entre R$ 1.064 e R$ 4.591 por mês – e, às vezes, também de acordo com o nível educacional. Portanto, a classe média indica o estrato intermediário numa escala de renda, arbitrariamente delimitada e sem levar em consideração dimensões que determinam as condições materiais da vida, como nível de endividamento e gastos com serviços básicos.

Uma terceira corrente, sob influência direta do marxismo, com mais ou menos ortodoxia, se fundamenta na noção de exploração. Não apenas os ricos são ricos porque excluem os pobres, mas se tornam ricos e mais ricos a partir da apropriação dos frutos do trabalho alheio. Na teoria, a exploração pressupõe relações de produção estruturalmente antagônicas, entre os que exploram e os que são explorados. A estrutura de classe – posições de classe que existem independentemente das pessoas específicas que as ocupam – determina, portanto, interesses materiais objetivos: os capitalistas têm incentivos racionais em maximizar a exploração, enquanto os trabalhadores têm incentivos racionais em limitá-la. Vários mecanismos podem qualificar os interesses objetivos, especialmente dos trabalhadores: se dominam outros trabalhadores, se são funcionários públicos etc. Essas qualificações podem fazer com que os explorados ajam em contradição com seus interesses definidos pela exploração e a reproduzam. A classe média pode ser definida como uma posição contraditória: pessoas que são exploradas – isto é, são trabalhadoras -, mas que detêm algum atributo próprio aos exploradores, como a capacidade de dominar.

O livro de Marcio Pochmann, Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira (Boitempo, 2012), se propõe a investigar as relações sociais brasileiras, especialmente as dinâmicas do mundo do trabalho e a desigualdade econômica, à luz dessa terceira corrente, fundamentada na noção de exploração. A análise de Pochmann adota, como ponto de partida teórico, a necessidade da consideração da estrutura de classe brasileira, em seu desenvolvimento histórico, nas transformações pelas quais passaram, no geral, o capitalismo e, mais especificamente, as relações de produção. Apresenta um panorama de classe multidimensional, relacional, com ênfase em interesses materiais, onde as posições na estrutura produtiva têm caráter explicativo.

Pochmann rejeita a tese de que o Brasil se tornou um país majoritariamente de classe média, à medida que o estrato social que mais cresceu foi o que ele chama de working poor (ou pobretariado). São trabalhadores, cuja renda até cresceu, mas que são explorados e, até mais dramaticamente do que outros trabalhadores, na medida em que muitos têm relações de trabalho terceirizadas, precárias, temporárias. Os dados com os quais Pochmann trabalha não lhe permitem esmiuçar a fundo as dinâmicas de exploração e suas contradições no Brasil contemporâneo, mas convida a análises teóricas e empíricas sobre a estrutura de classe no Brasil, um convite a empreitadas científicas que levem a sério a tradição da análise de classes.


João Alexandre Peschanski é Sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda.


FONTE: Controvérsia

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Nova esquerda europeia: o singular “Podemos”

Nascido dos "indignados", grupo espanhol rejeita financiamento de empresas, recorre a crowdfunding e usa  internet
para debate e mobilização. Elegeu cinco deputados para o Parlamento Europeu


Por Vinicius Gomes, na Revista Fórum


O resultado das eleições para o Parlamento Europeu deste domingo (25) levantou arrepios pela ascensão dos partidos de extrema-direita – notoriamente na França, seguida da Áustria e Dinamarca – e também pelo avanço dos “eurocéticos” e partidos anti-Europa, tendo seus principais exemplos na Alemanha e no Reino Unido. [*]

No entanto, para contrapor o clima de pessimismo quanto ao futuro extremista e desunido da Europa, uma das novidades positivas foi o partido espanhol Podemos. Nascido do gigantesco movimento social de protesto de 2011, os indignados” do movimento 15M, e institucionalizado como partido há três meses, o Podemos conseguiu eleger cinco deputados ao reunir cerca de 1,2 milhões de votos (7,94%), tornando-se a quarta força política mais votada da Espanha.

Na época do 15M, foi sugerido que nunca o país havia tido tantos movimentos sociais desde a luta contra Franco, no final da década de 1930. A diferença, no caso, foi que o movimento entendeu que sua estrutura deveria ser horizontal, sem lideranças e em rede. Não à toa que um de seus expoentes,  Pablo Iglesias, sempre se recusou a “apoderar-se” do movimento. Agora à frente do Podemos, ele mostrou como os gritos das ruas podem – e devem – ganhar representação política. “Poucos esperavam um resultado como esse”, disse Iglesias. “Os partidos da ‘casta’ tiveram um dos piores resultados de sua história”, completou.

A “casta” no caso era o bipartidarismo forte que existe na Espanha e uma das maiores bandeiras eleitorais do Podemos foi o combate ao Partido Popular (PP) e ao Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). As tradicionais siglas não conseguiram manter a hegemonia dos anos anteriores: juntos ficaram abaixo dos 50% de votos, perdendo mais de cinco milhões de eleitores em relação ao último pleito, em 2009.

Algumas das diferenças do Podemos para outros dos principais partidos de esquerda na Europa podem ser apontadas em temas como a proporção de homens e mulheres entre seus candidatos – alternância de um homem, uma mulher; com as primárias tendo sido realizadas online –, e pelo fato de seu financiamento ter sido viabilizado por doações voluntárias.

“Outros [partidos] pedem dinheiro aos bancos e acabam se endividando. Em nosso caso, a única dívida que temos é para com as pessoas, que são nossa fonte de financiamento”, afirmou Iglesias. As contribuições vieram de milhares de pessoas que enxergaram no partido uma forma de se recuperar da desastrosa realidade vivida pela Espanha, um dos países mais atingidos pela crise econômica na Europa e que ostenta a maior taxa de desemprego do bloco europeu por conta das drásticas medidas de austeridade impostas ao país.

Mesmo assim, os conservadores do PP foram maioria nas eleições de 25 de maio, elegendo 16 deputados, enquanto o PSOE conseguiu 14. Uma demonstração do sentimento de derrota foi expressa por Alfredo Pérez Rubalcaba, o líder socialista que renunciou e convocou um congresso extraordinário do PSOE para 19 e 20 de julho. “Não recuperamos a confiança dos cidadãos”, disse.

Daí também vem o sentimento de vitória do Podemos, que conseguiu entrar em uma das principais instituições europeias em pouquíssimo tempo. Além de Iglesias, foram eleitos Teresa Rodríguez, professora e ativista do “Marea Verde”; Carlos Jiménez Villarejo, que trabalhou contra corrupção anteriormente; a cientista social Lola Sánchez e Pablo Echenique-Robba, titular do Conselho Superior de Investigações Científicas.


[*] As eleições de que trata a matéria, foram realizadas para o Parlamento Europeu, em 25.05.2014 (Nota do Administrador do Blog)


FONTE: Outras Palavras

terça-feira, 1 de julho de 2014

Participação Social, o novo fantasma das elites


Reação feroz dos conservadores ao decreto de Dilma revela incapacidade de compreender sociedades atuais e interesse de manter política como monopólio dos "representantes"


Por Ladislau Dowbor


O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes.

A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso.

É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.

Os resultados foram que se construíram viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.

Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.

Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão pública.

Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.

A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade.

Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que chega a organizações deste tipo se multiplica.

A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários finais das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.

As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.

Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda nada.


Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org


FONTE: Outras Palavras