sábado, 28 de fevereiro de 2015

Boaventura examina a “onda Podemos”




Boaventura de Sousa Santos – Partido-movimento sugere resgatar democracia sequestrada e pode impulsionar iniciativas semelhantes em todo o mundo – desde que não seja visto como solução mágica.


Os países do Sul da Europa são social e politicamente muito diferentes, mas estão sofrendo o impacto da mesma política equivocada imposta pela Europa Central e do Norte, via União Europeia (UE), com resultados desiguais mas convergentes. Trata-se, em geral, de congelar a posição periférica destes países no continente, sujeitando-os a um endividamento injusto na sua desproporção, provocando ativamente a incapacitação do Estado e dos serviços públicos, causando o empobrecimento abrupto das classes médias, privando-os dos jovens e do investimento na educação e na pesquisa, sem os quais não é possível sair do estatuto periférico. Espanha, Grécia e Portugal são tragédias paradigmáticas.

Apesar de todas as sondagens revelarem um alto nível de insatisfação e até revolta perante este estado de coisas (muitas vezes expressadas nas ruas e nas praças), a resposta política tem sido difícil de formular. Os partidos de esquerda tradicionais não oferecem soluções: os partidos comunistas propõem a saída da UE, mas os riscos que tal saída envolve afasta as maiorias; os partidos socialistas desacreditaram-se, em maior ou menor grau, por terem sido executores da política de austeridade. Criou-se um vazio que só lentamente se vai preenchendo. Na Grécia, Syriza, nascido como frente em 2004, reinventou-se como partido em 2012 para responder à crise, e preencheu o vazio. Pode ganhar as próximas eleições. Em Portugal, o Bloco de Esquerda (BE), nascido quatro anos antes do Syriza, não soube reinventar-se para responder à crise, e o vazio permanece. Na Espanha, o novo partido Podemos constitui a maior inovação política na Europa desde o fim da Guerra Fria e, ao contrário do Syriza e do BE, nele não são visíveis traços da Guerra Fria.

Para entender Podemos, é preciso recuar ao Fórum Social Mundial, aos governos progressistas que emergiram na América Latina na década de 2000, aos movimentos sociais e aos processos constituintes que levaram esses governos ao poder, às experiências de democracia participativa, sobretudo em nível local, em muitas cidades latino-americanas a partir da experiência pioneira de Porto Alegre e, finalmente, à Primavera Árabe. Em suma, Podemos é o resultado de uma aprendizagem a partir do Sul que permitiu canalizar criativamente a indignação nas ruas de Espanha. É um partido de tipo novo, um partido-movimento, ou melhor, um movimento-partido assente nas seguintes ideias: as pessoas não estão fartas da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; o ativismo político é importante, mas a política tem de ser feita com a participação dos cidadãos; ser membro da classe política é algo sempre transitório e tal qualidade não permite que se ganhe mais que o salário médio do país; a internet permite formas de interação que não existiam antes; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia; ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto, prova-se nos fatos. Exemplo: quem na Europa é a favor da Parceria Transatlântica para o Investimento e Comércio não é de esquerda, mesmo que militante de um partido de esquerda. Este tratado visa os mesmos objetivos que a Área de Livre Comércio das Américas, vulgo ALCA, proposta por Bill Clinton em 1994 e engavetada em 2005, em resultado do vigoroso movimento de protesto popular que mobilizou as forças progressistas de todo o continente.

Em suma, o código genético do Podemos reside em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. Convém salientar que Podemos é uma versão particularmente feliz e potencialmente mais eficaz de inovações políticas que têm surgido em diferentes partes do mundo, tendo por pano de fundo o inconformismo perante o esvaziamento da democracia representativa provocado pela corrupção e pela captura dos partidos de governo pelo capital. Na Itália, surgiu em 2009 o Movimento Cinco Estrelas, liderado por Beppe Grillo, com fortes críticas aos partidos políticos e defendendo práticas de democracia participativa. Teve um êxito eleitoral fulgurante, mas as suas posições radicais contra a política criam grande perplexidade quanto ao tipo de renovação política que propõe. Em 2012, foi criado na Índia o Partido Aam Admi (partido do homem comum, conhecido pela sigla em inglês AAP). Este partido, de inspiração gandhiana e centrado na luta contra a corrupção e na democracia participativa, toma como impulso originário o fato de o homem comum (e a mulher comum, como acrescentaram as mulheres que se filiaram ao partido) não ser ouvido nem levado em conta pelos políticos instalados. Um ano depois da sua fundação tornou-se o segundo partido mais votado para a assembleia legislativa de Delhi.

É possível uma onda Podemos que se alastre a outros países? As condições variam muito de país para país. Por outro lado, Podemos não é uma receita, é uma orientação política geral no sentido de aproximar a política dos cidadãos e de mostrar que tal aproximação nunca será possível se a atividade política circunscrever-se a votar de quatro em quatro anos em políticos que se apropriam dos mandatos e os usam para fins próprios.

Curiosamente, na Inglaterra acaba de ser criado um partido, Left Unity, diretamente inspirado pelas ideias que subjazem ao Syriza e ao Podemos. Em Portugal, a onda Podemos é bem necessária, dado o vazio a que me referi acima. Portugal não tem a mesma tradição de ativismo que a Espanha. Em Portugal, Podemos será um partido diferente e, neste momento, terá pouca repercussão. Portugal vive o momento Costa. Em face dos fracos resultados do Partido Socialista (PS) nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, António Costa, prefeito da cidade de Lisboa, disputou com êxito a liderança da secretaria-geral do partido, eleita no último congresso. A disputa tomou a forma de eleições primárias abertas a militantes e simpatizantes do partido. As eleições tiveram muita participação e mostraram o que disse atrás: a distância dos cidadãos é só em relação à política de costume, sem horizonte de mudança em face de uma situação socioeconômica intolerável e injusta. O momento Costa faz com que a onda Podemos em Portugal se destine sobretudo a preparar o futuro: para colaborar com o PS, caso este esteja interessado numa política de esquerda; ou para ser uma alternativa, caso o PS se descredibilize, o que fatalmente ocorrerá se ele aliar-se à direita. Por agora, a segunda alternativa é a mais provável.

Será possível que a onda Podemos chegue à América Latina, como que devolvendo ao continente a inspiração que recebeu deste e da sua brilhante primeira década do século XXI? Certamente seria importante que isso ocorresse nos dois grandes países governados por forças conservadoras, México e Colômbia. Neste países, os esforços para formular e dar credibilidade a uma nova política de esquerda não conseguiram até agora furar o bloqueio da política oligárquica tradicional. No caso do México, há que referir tentativas tão diversas quanto La Otra Campaña, por iniciativa do Exército Zapatista de Libertação Nacional, ou o movimento político aglutinado em redor de López Obrador, e, no caso da Colômbia, o Polo Democrático e todas as vicissitudes por que passou até hoje (polo democrático independente, polo democrático alternativo).

Nos países onde as forças progressistas conseguiram grandes vitórias na primeira década do século XXI e onde os partidos de governo foram, eles próprios, emanação de lutas populares recentes, poderá pensar-se que a onda Podemos teve aqui a sua fonte e por isso nada de novo pode fazer acontecer. Refiro-me ao Partidos dos Trabalhadores (PT) no Brasil, ao Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia, à Alianza Pais no Equador e ao Partido Socialista Unido (PSUV) na Venezuela.

Trata-se de realidades políticas muito distintas, mas parecem ter duas características em comum: procuraram dar voz política às classes populares em grande medida oprimidas pelas classes dominantes, ainda que concebam as classes populares, não como coletivos, mas antes como grupos de indivíduos pobres; tiveram êxito político e o exercício do poder de governo pode estar a descaracterizar a marca de origem (seja por via do caudilhismo, da corrupção, ou da rendição aos imperativos do desenvolvimento neoliberal etc). O desgaste político é maior nuns do que noutros, apesar das vitórias recentes, algumas delas retumbantes (caso do MAS nas eleições de 2014). Nestes países, tal como, de resto, nos dois outros países com governos de centro-esquerda assentes em partidos mais antigos, a Argentina e o Chile, a onda Podemos, se vier a ter alguma relevância, tenderá a assumir duas formas: reformas profundas no interior destes partidos (mais urgentemente reclamadas no PT do que nos outros partidos); criação de novos partidos-movimento animados pela mesma dinâmica interna de democracia participativa na formulação das políticas e na escolha dos líderes.

Como o caso do indiano AAP mostra, o impulso político que subjaz ao Podemos não é um fenômeno da Europa do Sul/América Latina. Pode aparecer sob outras formas noutros continentes e contextos. Um pouco por toda a parte, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acreditaram na promessa da democracia, anunciada ao mundo como o fim da história, estão chegando à conclusão de que a democracia representativa liberal atingiu o seu grau zero, minada por dentro por forças antidemocráticas, velhas e novas oligarquias com poder econômico para capturar o sistema político e o Estado e os colocar a serviço dos seus interesses. Nunca como hoje se tornou tão evidente que vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas. A onda Podemos é uma metáfora para todas as iniciativas que tentam uma solução política progressista para o pântano em que nos encontramos, uma solução que não passe por rupturas políticas abruptas e potencialmente violentas.

Os EUA são neste momento um dos países do mundo onde o grau-zero da democracia é mais evidente. E certamente o país do mundo onde a retórica da governança democrática é mais grosseiramente desmentida pela realidade política plutocrática e cleptocrática. Depois que o Tribunal Supremo permitiu que as empresas financiassem os partidos e as campanhas como qualquer cidadão, e, portanto, anonimamente, a democracia recebeu o seu golpe final. As agendas das grandes empresas passaram a controlar totalmente a agenda política: da mercantilização total da vida ao fim dos poucos serviços públicos de qualidade; da eliminação da proteção do meio ambiente e dos consumidores à neutralização da oposição sindical; da transformação da universidade num espaço de aluguel para serviços empresariais à conversão dos professores em trabalhadores precários e dos estudantes em consumidores endividados para toda a vida; da submissão, nunca como hoje tão estrita, da política externa aos interesses do capital financeiro global à incessante promoção da guerra para alimentar o complexo industrial-securitário-militar. Em face disso, não surpreende que muitos dos norte-americanos inconformados com o status quo tenham começado a ler ou a reler Marx e Lênin.

Encontram nestes autores a explicação convincente do estado de coisas a que chegou a sociedade norte-americana. Não os seguem na busca de alternativas, de ideias para refundar a política democrática do país, pois conhecem os catastróficos resultados políticos da prática leninista (e trotskista, convém não esquecer).

Surpreendentemente, combinam essas leituras com a da Democracia na América de Alexis de Tocqueville e a sua apologia da democracia participativa e comunitária nos EUA das primeiras décadas do século XIX. É aí que vão buscar a inspiração para a refundação da democracia nos EUA, a partir da complementaridade intrínseca entre democracia representativa e democracia participativa. Sem o saberem, são portadores da energia política vital que a onda Podemos transporta.


Texto postado originalmente em:

http://outraspalavras.net/destaques/boaventura-examina-a-onda-podemos/

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A verdade sobre os sindicatos de Cuba


Por Cheryl LaBash

A nova “amizade” entre os EUA e Cuba é semelhante à velha inimizade. A classe dominante dos Estados Unidos conseguiu que o Congresso colocasse 11 milhões na criação de um programa para a promoção da «liberdade de organizar sindicatos» em Cuba. Nos EUA essa liberdade é de tal ordem que a percentagem de trabalhadores sindicalizados não atinge os 12%.

O presidente Barack Obama afirmou na sua declaração de 17 de Dezembro sobre as «mudanças de política» em relação a Cuba: «Achamos que os trabalhadores cubanos devem ter a liberdade de formar sindicatos». Que quer ele dizer? Já mais de 90% dos trabalhadores cubanos são membros de sindicatos. Em comparação com os Estados Unidos, onde em 2013, segundo as Estatísticas Laborais, só 11,3% dos trabalhadores eram membros de sindicatos. Não serão os americanos que precisam de liberdade para filiação nos sindicatos?

Logo a 22 de Dezembro, o Departamento de Estado dos Estados Unidos ofereceu 13 milhões de dólares dos impostos pagos pelos americanos para financiarem programas que possam fomentar «os direitos civis, políticos e laborais em Cuba». O quê? O orçamento dos Estados Unidos conta com 11 milhões para gastar em «direitos laborais» em Cuba, quando mais de 50% das famílias das crianças norte-americanas em escolas públicas são tão pobres que são elegíveis para almoços escolares gratuitos ou a preço reduzido? (Nova Iorque, 16 de Janeiro)

Afinal o que se passa?

A revolução cubana de 1959 derrubou aí o sistema económico capitalista. Mas a unificação dos sindicatos cubanos na Central de Trabalhadores de Cuba, CTC, remonta a 1939, 20 anos antes do triunfo da revolução. Os sindicatos são organizações independentes, voluntárias e autofinanciadas.

As quotas de 1% dos salários recolhem-se directamente no local de trabalho, não através de deduções.

Demonstração de democracia aberta

Cuba é um estado trabalhador que está a forjar o socialismo. A riqueza criada através da produção de bens e serviços utiliza-se para melhorar a vida de todo o povo, não para beneficiar uns poucos. Os seus sindicatos estão directamente implicados na solução dos muitos desafios que a sociedade cubana enfrenta — que incluem o peso do bloqueio económico, financeiro e comercial unilateral dos Estados Unidos, acrescido das centenas de anos de subdesenvolvimento colonial.

Propostas para iniciar ou mudar leis discutem-se em cada local de trabalho, nas assembleias de bairro e nas organizações de massas como a Federação de Mulheres Cubanas. As emendas e observações realizadas registam-se, são consideradas e alteram o resultado final. Os Esboços Económicos, adoptados no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba foram forjados através de uma ampla consulta com o povo cubano — não só com os membros do partido. Mais de oito milhões de pessoas (9,9) discutiram-nas em 163.000 reuniões. A população total de Cuba é de cerca de 11 milhões.

As decisões económicas nos Estados Unidos são feitas pelos patrões, os banqueiros e pala classe capitalista insaciável para maximizar os seus lucros. Estas decisões aumentam a desigualdade social e a insegurança económica para a classe trabalhadora, enquanto enriquecem a décima parte do 1% mais rico.

Os sindicatos podem lutar por uma melhoria do sistema económico de lucros, mas nesta época de capitalismo num beco sem saída, é frequentemente uma batalha perdida. Os saltos na produtividade, em lugar de aliviar a carga da classe trabalhadora, resultam em desemprego, cidades em bancarrota e uma desigualdade crescente de rendimento. São os «especialistas» treinados por bancos e corporações, nunca os trabalhadores ou sindicatos, que escrevem as leis sobre assuntos económicos para que os legisladores as aprovem sem problemas.

Os trabalhadores cubanos são a força principal na construção do socialismo e em garantir que as necessidades básicas para uma vida digna estejam disponíveis para todos. Isso inclui a atenção gratuita e a qualidade da saúde e educação, além do acesso à cultura e ao desporto. No centro de convenções na cidade de Holguin há um mural que anuncia «300 milhões de crianças dormem na rua todas as noites, nenhuma delas é cubana». Isso é resultado da sua economia socialista.

A 15 de Janeiro, a Agência Nacional de informação (AIN) anunciou algo muito fora da experiência dos trabalhadores dos Estados Unidos. A CTC, equivalente em Cuba à AFL-CIO, pediu aos trabalhadores que realizassem assembleias nos centros de trabalho para que os administradores pudessem informá-los sobre o plano económico adoptado e o orçamento anual. Disseram «não é possível cumprir um plano de produção sem a participação activa dos colectivos laborais que têm a capacidade de utilizar o seu potencial em termos de eficiência que nós como sindicatos sabemos que têm.

No encerramento do quarto período de sessões da Assembleia Nacional do Poder Popular, o presidente cubano Raul Castro Ruiz explicou: «Não é segredo para ninguém que no nosso sistema social os sindicatos defendem os direitos dos trabalhadores e para o conseguir efectivamente devem ser os primeiros a velar não pelo interesse de um colectivo laboral determinado, mas também pelos interesses de toda a classe trabalhadora, que são essencialmente os mesmos que garantem toda a nação.

Não podemos deixar espaço a que se desenvolva e fortaleça o egoísmo e a cobiça entre os nossos trabalhadores. Todos queremos e necessitamos de melhores salários, mas antes há que criar a riqueza para depois a distribuir de acordo com a capacidade de cada um (granma.cu)

Mas, que se passa com os trabalhadores dos Estados Unidos quando aumenta a produtividade? O Departamento de Trabalho informou a 9 de Janeiro que os salários tinham diminuído em Dezembro apesar do emprego oficial ter melhorado um pouco. A economista de Wall Street, Diane Swonk explica assim:

«Isto continua a ser um mercado de compradores em termos de mão-de-obra. Com todas as boas notícias sobre o desemprego e o número de postos de trabalho que criamos, se acreditarmos nestas cifras salariais, os empregadores ainda podem seleccionar» (Nova Iorque, 10 de Janeiro).

Isso explica porque a classe dominante dos Estados Unidos conseguiu que o Congresso colocasse 11 milhões na criação de um programa falso para poder cravar as suas garras em Cuba a coberto da promoção da «liberdade de organizar sindicatos». O que os patrões realmente querem aqui é ter uma selecção de escravos assalariados que devem vender a sua força de trabalho no mercado «livre» em vez de os trabalhadores serem os agentes de planificação que podem decidir o seu destino socialista.

Tradução: Manuela Antunes


FONTE: ODiario.info

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular


Por Edmilson Costa [*]

O golpe militar no Brasil, em 1964, implantou uma longa ditadura que durou 21 anos, sufocou as liberdades democráticas, criou um modelo econômico concentrador de renda, prendeu milhares de pessoas, implantou a tortura como método de investigação e assassinou centenas de militantes nos porões de repressão, existindo hoje mais de 350 desaparecidos políticos. Também ao longo da ditadura o povo brasileiro resistiu de diversas formas, desde o voto nos partidos de oposição, às manifestações de ruas, às greves operárias e estudantis até a luta armada. 

A luta mais efetiva contra o regime militar envolveu dezenas de organizações revolucionárias, todas clandestinas e com os mais variados métodos de luta. Algumas organizações, como o PCB, optaram pelo trabalho de massas e a constituição de uma ampla frente democrática contra a ditadura; outras foram para o campo organizar as guerrilhas rurais e a grande maioria, optou pela guerrilha urbana como primeiro passo para construir as condições para a organização da guerrilha no campo. A maioria dessas organizações era constituída por jovens estudantes, a grande maioria saídos de dissidências do PCB. Todas essas organizações foram massacradas pelo regime militar, tanto do ponto de vista militar quanto na tortura e tiveram breve existência. 

Entre as organizações que lutaram contra a ditadura, uma delas tem uma historia singular, tanto pela origem dos seus militantes, quanto pelo trabalho de massas que realizou, além do fato de ter se constituído numa organização que chegou a ter cerca de 25 mil membros, entre militantes orgânicos e simpatizantes, com atuação em todos os Estados do País, sendo que pelos menos mil de seus militantes foram deslocados para o trabalho nas fábricas e no campo, processo que denominavam de proletarização. Trata-se da Ação Popular (AP), uma organização inicialmente vinculada à igreja católica e que depois foi evoluindo ideologicamente até absorver o marxismo. 

A Ação Popular foi constituída a partir de organizações da igreja católica, com o a Juventude Estudantil Católica (secundaristas), Juventude Universitária Católica, Juventude Operária Católica e Juventude Agrária Católica e do trabalho junto ao Movimento de Educação de Base. Sua evolução política teve a influência dos teóricos católicos Emanuel Mounier, Jacques Maritain, Teilhard de Chardin e do padre brasileiro Henrique Vaz, além de pensadores progressistas da igreja presbiteriana. Nasceu como movimento, depois se transformou em organização política e, influenciada pela visita de seus militantes à China, optou pelo maoísmo. No início da década de 70, grande parte dos seus militantes ingressaram no PC do B e hoje compõe a sua direção, enquanto outra parte continuou na resistência à ditadura até se dissolver posteriormente nos anos 80. 

Essa história da Ação Popular agora está publicada num trabalho de excelente qualidade e resgate histórico, de autoria do jornalista Otto Filgueiras. O trabalho foi produzido em dois volumes, com 85 capítulos, cujo primeiro volume agora está sendo publicado pelas Edições ICP. Trata-se de uma pesquisa de mais de duas décadas, no qual o autor realizou entrevistas com mais de 200 ex-dirigentes e ex-militantes da AP, pesquisou nos arquivos da polícia política brasileira, nos arquivos pessoais de ex-dirigentes, nos processos a que os militantes responderam na justiça militar e nos acervos documentais da Universidade de Campinas, que reúne a mais ampla documentação sobre o movimento operário brasileiro e sobre o período da ditadura. 

Portanto, trata-se de um trabalho de fôlego e uma enorme contribuição para a história da resistência à ditadura, especialmente porque este é um período muito pouco conhecido pela geração atual, uma vez que o povo brasileiro ainda não conseguiu fazer o ajuste de contas com seu passado ditatorial, como já ocorreu nos outros países da América Latina que também viveram períodos de repressão e ditadura. Até hoje os militares resistem em abrir os arquivos do período ditatorial. O primeiro volume, com 561 páginas e uma galeria de fotos com momentos importantes da resistência ao golpe, está dividido em 41 capítulos e envolve o período pré-1964 até os anos 1968. Com prefácio do historiador Mario Maestri, o livro reconstrói de maneira rigorosa a trajetória de uma das mais importantes organizações revolucionárias brasileiras na resistência à ditadura. 

O livro começa relatando os primórdios da organização, quando os jovens ainda estavam envolvidos pela doutrina da igreja e, aos poucos, foram despertando para o entendimento da realidade brasileira e para a luta contra as injustiças sociais. Essa nova visão da realidade levou esses jovens militantes a ir rompendo aos poucos com o conservadorismo da igreja, participando das lutas estudantis junto com os marxistas, realizando o trabalho de alfabetização no interior do País e posteriormente se constituindo em movimento político com atuação independente da igreja, mas sem nunca perder os contatos com os membros dessa instituição que estavam participando dos trabalhos junto à população. 

Inicialmente constituída como sociedade civil Ação Popular , a primeira reunião de pré-fundação foi realizada em 1962, no Convento dos dominicanos, em Belo Horizonte, sob forte influência do padre Henrique Vaz, onde foi eleita uma coordenação nacional e elaborado o Estatuto Ideológico da organização. No entanto, a fundação oficial da AP como organização política só veio a ocorrer em 1963, em Salvador, na Bahia, ocasião em que foi aprovado o Documento Base da organização, ainda com base filosófica idealista, como constata o autor, e onde se elegeu um Comitê Nacional, coordenado por Herbert de Souza, O Betinho, figura carismática imortalizada em uma bela música de João Bosco e Aldir Blanc. 

Vale destacar que a Ação Popular, a partir de sua organização, passou a ter uma grande influência no movimento estudantil brasileiro e, em aliança com o PCB, dirigiu a União Nacional dos Estudantes (UNE) no período anterior ao golpe e manteve essa influência, chegando a eleger vários presidentes da UNE no período após o golpe militar. Influenciada pelas teses maoístas, a AP decidiu proletarizar seus militantes e cerca de um milhar deles foram deslocados para trabalhos de base nas fábricas e entre os camponeses brasileiros. 

Nas mais duras condições de clandestinidade, a AP contribuiu de forma militante para um conjunto de lutas contra a ditadura, como a reorganização da UNE, as comemorações do primeiro de maio, no qual expulsou do palanque em São Paulo os pelegos e o governador Abreu Sodré, o atentado no aeroporto de Guararapes, as lutas camponesas pelo interior do País e nas lutas do ABC paulista, muito embora o forte da organização fosse mesmo o trabalho entre a juventude estudantil. 

A partir de meados da década de 60, a AP começou a enviar delegações para a China com o objetivo de realizar treinamento militar e cada vez mais começou a ser influenciada pelas ideias do Partido Comunista Chinês e sua estratégia de guerra popular prolongada, o que levou a organização a um impasse, uma vez que nem todos concordavam com essa orientação, o que levaria ao primeiro dos muitos rachas que a organização enfrentaria ao longo de sua história. O primeiro racha ocorreu no segundo semestre de 1968 quando a organização fez sua opção pela luta armada. 

A origem desta grande cisão ocorreu a partir do debate no interior da organização sobre as duas teses que disputavam os rumos da AP: a Tese 1, foi elaborada pela corrente majoritária e fortemente influenciada pelas teses maoístas, avaliava que "a sociedade brasileira é semifeudal e semicolonial, que as forças produtivas são entravadas pelo monopólio da terra, pelas formas de exploração do trabalho, resultando numa ditadura do conjunto do poder latifundiário burguês". Por isso, "a guerra revolucionária é total e prolongada, cercando as cidades a partir do campo, para toma-las em conjugação com as forças da cidade". 

Já a Tese 2, Duas Posições, tinha visão completamente diferente do Brasil. Para a corrente minoritária, o Brasil era um país com a dominância do modo de produção capitalista, onde há "a subordinação da agricultura pela indústria e ao mercado capitalista, pela dominação do campo pela cidade, pela predominância da grande produção sobre a pequena, tanto na indústria quanto na agricultura ... pela predominância do capital financeiro sobre as outras formas de capital e pelo grau de transformação da propriedade fundiária em uma forma de propriedade correspondente ao modo capitalista de produção ... Opera-se um poderoso movimento de concentração e centralização do capital que aumenta a dependência da agricultura ao capital financeiro". Com essas características diz a Tese 2, a revolução seria de cunho marcadamente antimperialista e democrática e a força principal da revolução brasileira era o proletariado urbano e rural e seus aliados, os camponeses, trabalhadores explorados e a pequena burguesia em processo de proletarização. 

Eram duas interpretações do Brasil radicalmente diferentes e é natural que não poderiam conviver na mesma organização, tanto que a corrente minoritária foi expulsa. Lendo com os olhos de hoje pode-se dizer que, mesmo derrotados, aquela corrente estava mais próxima da realidade brasileira que os jovens apaixonados pelas teses maoístas. Com essa cisão, a AP perdeu importantes dirigentes históricos da organização, além de militantes em várias regiões do País. 

Para se ter ideia da importância que a Ação Popular teve no Brasil, vale ressaltar que uma parcela expressiva dos personagens que militam na política brasileira, independente de suas posições da juventude, são até hoje figuras de expressão nacional. Muito embora estejam do outro lado das barricadas, foram ou são ministros, grandes empresários, executivos de grandes empresas, governadores, senadores e deputados. 

Por isso, o primeiro volume de Revolucionários sem rosto: uma história da Ação Popular deve ser lido por todos aqueles que querem compreender a história da resistência à ditadura no Brasil. Escrito de maneira envolvente, com um rigor documental extraordinário, recupera para a história as lutas e a trajetória de uma geração de brasileiros que doou generosamente o melhor de suas vidas, inclusive sacrificando a própria vida, para a conquista da democracia e de uma sociedade próspera e justa. Aguardem o segundo volume.



sábado, 14 de fevereiro de 2015

O PODER POPULAR



O PODER POPULAR: UM JORNAL COMUNISTA A SERVIÇO DAS LUTAS POPULARES



O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) apresenta aos trabalhadores e aos militantes dos movimentos populares o jornal O Poder Popular, que de ora em diante assume o papel de divulgação das ideias e proposições dos comunistas do PCB. É um jornal comunista a serviço da crítica ao capitalismo e suas mazelas, ao mesmo tempo em que se colocará sempre ao lado dos interesses e necessidades dos trabalhadores e das massas populares, nas lutas contra a exploração e as ações perversas provocadas pelo sistema e pelo imperialismo. É um jornal que buscará estar antenado com as movimentações da classe trabalhadora em todo o mundo, praticando a solidariedade internacionalista e bradando em defesa da revolução socialista.

O Poder Popular surge no contexto de consolidação do processo de reconstrução revolucionária do PCB. Por isso leva em seu nome a principal bandeira política que defendemos hoje, como uma proposta de construção dos instrumentos de organização da classe trabalhadora no enfrentamento à hegemonia política e cultural da burguesia e na busca por uma sociedade alternativa ao capitalismo.

O novo formato, disponibilizado para toda a militância do PCB em meio eletrônico, pretende agilizar a impressão e a distribuição do jornal, para que sirva de instrumento de agitação e propaganda nos locais de atuação dos comunistas, ou seja, nos bairros, nas fábricas, nos sindicatos, locais de trabalho, escolas, universidades, nas ruas, nas manifestações populares. Caberá agora aos Comitês Estaduais do PCB a tarefa de organizar a impressão e o trabalho com o jornal. E às células o compromisso de levar sempre o jornal para a militância cotidiana.

Seguindo o caminho aberto pelos órgãos da imprensa comunista, que, em períodos históricos diferenciados, cumpriram o papel da denúncia contra a burguesia, da propaganda das ideias socialistas e comunistas e da organização coletiva, como queria Lênin, mas sem a pretensão de copiar aquelas grandes experiências representadas por jornais como A Classe Operária, Novos Rumos, A Voz Operária e a Imprensa Popular, dentre outros, esperamos que O Poder Popular se afirme como um importante meio alternativo ao discurso dominante.

Comissão Nacional de Comunicação do PCB

FONTE: Portal PCB

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O Marxismo Libertário de Anton Pannekoek


Por Nildo Viana (*)


A história do marxismo, no período posterior a Marx e Engels, foi obscurecida, por um lado, pela historiografia oficial, e, por outro, pelo “marxismo” oficial. Este último reduz a história do marxismo à história da social-democracia e do bolchevismo. No entanto, “tanto a social-democracia quanto o bolchevismo nada tem a ver com o movimento operário” (Rosenberg, 1986). Este é motivo pelo qual vários teóricos que desenvolveram a teoria marxista foram marginalizados e esquecidos na história do marxismo, tal como é o caso de Anton Pannekoek.

Anton Pannekoek foi um dos principais representantes do comunismo conselhista. Ele nasceu 1873 na Holanda e morreu em 1960. Escreveu obras fundamentais para o movimento comunista revolucionário, tais como: Os Conselhos Operários; Lênin, Filósofo; Revolução Mundial e Tática Comunista; e uma diversidade de artigos e outras obras.

Segundo Paul Mattick, outro teórico conselhista,
“como outros socialistas holandeses notaram, Pannekoek saiu da classe média, e como ele próprio uma vez acentuou, o seu interesse pelo socialismo provinha de uma tendência científica bastante poderosa, para envolver a um tempo a sociedade e a natureza. Para ele, o marxismo era a ciência aplicada aos problemas sociais e a humanização da ciência era um aspecto da humanização da sociedade. Sabia conciliar o seu gosto pelas ciências sociais com a sua paixão pelas ciências da natureza; ele torna-se não só um dos teóricos dirigentes do movimento operário radical, mas também um astrônomo e um matemático de reputação mundial” (Mattick, 1976, p. 6).
Pannekoek publicou também várias obras que tratam de temas considerados das ciências naturais, tal como História da Astronomia; Marxismo e Darwinismo; e AntropogêneseEstudo sobre a Origem do Homem (há tradução para o esperanto desta obra: Pannekoek, 1978), entre outras.

Pannekoek foi um militante revolucionário desde sua juventude. Segundo Mattick, “ainda jovem estudante em ciências naturais, e especializando-se em astronomia, Pannekoek entrou no Partido Operário Social-Democrata da Holanda e situou-se imediatamente na sua ala esquerda ao lado de Hermann Gorter e Frank van der Goes” (Mattick, 1976, p. 10-11). Neste partido, fundado por Domela Nieuwenhuis, de origem anarco-sindicalista, Pannekoek e Gorter fundaram um jornal que representava as posições de sua esquerda e logo a degeneração reformista fez com que eles rompessem com ele e fundassem o Partido Social Democrata. Este também seria abandonado tão logo passasse a ser seguidor da linha bolchevique. Neste período, Pannekoek assumiu uma posição antimilitarista (era a época da primeira guerra mundial), rejeitou o parlamentarismo como meio de transformação social e se opôs à expulsão dos anarquistas da II Internacional.

A explosão da primeira guerra mundial e o apoio da social-democracia serviu para unir os vários grupos oposicionistas. Na Alemanha, Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt e outros militantes, formaram a Liga Spartacus, que, futuramente – junto com os comunistas internacionalistas (Rühle e outros) – formariam o Partido Comunista Alemão; Na Holanda, os oposicionistas à guerra imperialista se aglutinaram em torno de Pannekoek, Gorter, Roland-Host.

Ocorre, nesse período, a Revolução Russa. Rosa Luxemburgo e os comunistas holandeses demonstraram não oferecer apoio incondicional, como a maioria na época fez. Sem dúvida, os militantes de esquerda possuem uma necessidade inconsciente de se agarrar a experiências e movimentos em outros países para se sentirem “do lado do desenvolvimento histórico”, o que demonstra a insegurança psíquica de muitos revolucionários, que assim apelam para o modelo soviético, cubano ou “guevarista”, ou qualquer outro. Rosa Luxemburgo escreveu textos de crítica ao bolchevismo e à revolução russa, demonstrando receio em relação ao autoritarismo bolchevique. Todos eles (Rosa Luxemburgo, Pannekoek, etc.), ofereceram “apoio crítico”, colocando já as discordâncias em relação a um processo que ainda não estava claro para pessoas de outros países.

As experiências soviética e alemã influenciaram Pannekoek. Ele era um marxista declarado. Ele concordava com os princípios básicos do marxismo, sendo que o modo de produção era considerado por ele como elemento fundamental para a explicação da sociedade. É o modo de produção da vida material que fornece a determinação fundamental do conjunto das demais relações sociais. Assim, ele observava o que passava na esfera da produção e sua relação com o movimento político geral da sociedade. A luta de classes torna-se o “motor da história”, como em Marx, e a luta operária se manifesta como o embrião do comunismo e é por isso que toda sua obra será dedicada a analisar a forma de emancipação dos trabalhadores e a experiência histórica e concreta da luta operária lhe inspirará na sua constituição de sua teoria dos conselhos operários.

A experiência russa dos sovietes (conselhos operários), que também ocorreu na Alemanha, foi fundamental para Pannekoek assumir sua posição conselhista. Segundo Mattick,
“Pannekoek reconheceu neste movimento dos conselhos o princípio de um novo movimento operário revolucionário, e ao mesmo tempo o início de uma reorganização socialista da sociedade. Este movimento não podia nascer e manter-se senão opondo-se às formas tradicionais. Estes princípios atraíram a parte mais militante do proletariado em revolta, para grande desgosto de Lênin que não concebia um movimento escapando ao controle do Partido ou do Estado e que procurava castrar os sovietes da Rússia. Não podia tolerar um movimento comunista internacional fora do controle absoluto do seu próprio partido. Primeiro recorrendo a intrigas, e depois em 1920 abertamente, os bolcheviques esforçaram-se por combater as tendências antiparlamentares e anti-sindicais do movimento comunista, sob o pretexto de que era preciso não perder o contato com as massas que aderiam às antigas organizações. O livro de Lênin, O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo, era sobretudo dirigido contra Gorter e Pannekoek, porta-vozes do movimento dos conselhos comunistas. O Congresso de Heidelberg em 1919 dividiu o partido comunista alemão numa minoria leninista e numa maioria que aderiu aos princípios do antiparlamentarismo e do anti-sindicalismo sobre os quais o partido tinha sido fundado inicialmente. Nova controvérsia se junta à primeira: ditadura do partido ou ditadura de classe? Os comunistas não leninistas adotaram o nome de Partido Operário Comunista da Alemanha (KAPD). Uma organização similar foi mais tarde fundada na Holanda. Os comunistas de partido se opuseram posteriormente aos comunistas de conselhos e Pannekoek colocou-se ao lado dos segundos” (Mattick, 1976, p. 16-17).
Assim nasce a mais importante e desenvolvida corrente do marxismo mundial: o comunismo conselhista. A partir deste momento, vai se firmando cada vez mais esta corrente e sua posição diante do bolchevismo vai se clarificando. Korsch já colocara, anteriormente, o princípio fundamental para a análise da história do marxismo: a aplicação do materialismo histórico ao próprio materialismo histórico (Korsch, 1977). E procedendo desta forma, ele concebeu três fases na história do marxismo, sendo que a última corresponderia à retomada do seu caráter revolucionário acompanhando a emergência das lutas revolucionárias do proletariado no início do século 20, sendo expresso por teóricos como Rosa Luxemburgo, Hermann Gorter, Anton Pannekoek, Otto Rühle, entre outros. Esta corrente deveria, necessariamente, entrar em confronto tanto com a ala reformista social-democrata quanto com a ala bolchevista, o que ocorreu embrionariamente já desde os confrontos de Rosa Luxemburgo contra a social-democracia (Bernstein e Kautsky) e Lênin, e se solidificou com os desdobramentos da Revolução Russa e das demais tentativas de revolução proletária na Europa.

O comunismo de conselhos via nos conselhos operários (Sovietes, na Rússia) como a forma de auto-organização revolucionária do proletariado, tal como se pode ver embrionariamente na Comuna de Paris e posteriormente em 1905, na primeira Revolução Russa, bem como nas diversas tentativas de revolução proletária na Europa, sem falar na Revolução Russa de 1917. Os conselhos operários também seriam as instituições de autogestão social na reorganização comunista da sociedade. Neste contexto, se desenvolvia a crítica aos partidos políticos e sindicatos. Otto Rühle, por exemplo, seria o mais ferrenho crítico dos partidos políticos, não a determinados partidos, mas aos partidos em geral, tal como se vê em seu artigo A Revolução não é Tarefa de Partido.

Os sindicatos também sofreram várias críticas dos teóricos conselhistas. Ao invés de organizações que representariam os interesses do proletariado, os sindicatos representavam, na verdade, os interesses da classe dominante. Segundo Pannekoek, “As condições existentes nos sindicatos atuais os transformaram, mais que nunca, em órgãos de dominação do capitalismo monopolista sobre a classe operária” (Pannekoek, 1977, p. 102).

Pannekoek também era um crítico da social-democracia reformista e do parlamentarismo. Para ele, o parlamento é um freio para o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e a democracia burguesa é uma forma de escravizar e não de libertar a classe proletária (Pannekoek, 1978).

Depois do confronto na III Internacional, os teóricos conselhistas (Pannekoek, Rühle, Wagner, Gorter, etc.) vão cada vez mais aprofundando sua crítica ao bolchevismo e ao regime ditatorial russo. A Rússia passa a ser caracterizada como um capitalismo de estado. Segundo Pannekoek,
“a consolidação do capitalismo de estado na Rússia foi a razão determinante do caráter que tomou o Partido Comunista. Enquanto que na sua propaganda no exterior, continuava falando de comunismo e de revolução mundial, criticava o capitalismo e chamava os trabalhadores a se unirem na sua luta pela libertação, escondia o fato de que na Rússia os trabalhadores não eram mais que uma classe submetida a uma ditadura opressiva e implacável, privada de liberdade de expressão, de imprensa e associação, muito mais duramente submetida que as classes operárias dos países ocidentais” (Pannekoek, 1977, p. 129).
A posição de Pannekoek e dos comunistas de conselhos se torna antibolchevista. O bolchevismo passa a ser visto como um movimento contra-revolucionário que atua dentro do movimento operário. Tal como colocou Mattick,
“enquanto a luta de Lênin contra a ‘ultra-esquerda’ era o primeiro sintoma das tendências contra-revolucionárias do bolchevismo, o combate de Pannekoek e Gorter contra a corrupção leninista do novo movimento operário foi o começo de um antibolchevismo dum ponto de vista proletário” (Mattick, 1976, p. 18-19).
O capitalismo estatal russo transformou o marxismo em ideologia da burocracia “soviética”. Em Lênin, Filósofo, Pannekoek buscava analisar a filosofia leninista e demonstrou que o seu materialismo, oposto ao idealismo de Mach e Avenarius, exposto em Materialismo e Empireocriticismo, revela mais um fundamento do caráter semiburguês do bolchevismo, pois ele criticava estes autores com base no materialismo burguês, aquém do materialismo histórico.

Segundo Pannekoek,
“O materialismo burguês identifica a matéria física com a realidade objetiva; portanto, deve-se considerar tudo o mais, também o espiritual, com um atributo, uma propriedade desta matéria. Logo, não é estranho que encontremos as mesmas idéias em Lênin” (Pannekoek, 1973, p. 13).
Esta concepção de matéria, contrária a posição do materialismo histórico, é uma retomada do materialismo burguês, que fornece um fundamento filosófico de caráter burguês ao bolchevismo. E é este o motivo do ataque de Lênin a Joseph Dietzgen, defendido por Pannekoek. O curioso é que Dietzgen foi considerado por Engels como um dos fundadores da dialética materialista (Engels, s/d; Engels, 1990) e, no entanto, foi criticado e abandonado pelos social-democratas e bolchevistas (de Kautsky e Plekhanov até Lênin e os leninistas), apesar de se inspirarem mais em Engels do que em Marx para criar sua ideologia do “materialismo dialético” (Viana, 1997). Mas o que se tem, neste caso, neste uso do materialismo burguês sob a máscara de materialismo histórico, é a criação de uma ideologia de uma nova classe social, a burocracia, ou, segundo Pannekoek, a intelligentsia:
“Esta ideologia leninista, que hoje professam os partidos comunistas e que, em princípio, se adequa à ideologia tradicional do velho partido social-democrata, já não expressa nenhum dos objetivos do proletariado. Segundo Harper [Pannekoek – NV], é muito mais a expressão natural dos objetivos de uma “nova classe”: a intelligentsia” (Korsch, 1973, p. 157).
A Revolução Russa era vista como uma contra-revolução burocrática que sucedia a revolução operária dos sovietes. O bolchevismo, do ponto de vista de Pannekoek, utilizava métodos que “não tem nada a ver com um marxismo revolucionário, nem com a práxis da luta de classes da Europa ocidental, e que inclusive se encontrava em contradição com ambos” (Brendel, 1978, p. 9).

A segunda guerra mundial e a ascensão do nazi-fascismo marcaram a crise do movimento operário e, por conseguinte, do comunismo conselhista. Este sobreviveria marginalmente na sociedade capitalista, tanto através de publicações e coletivos que reivindicavam o comunismo de conselhos quanto através de sua influência nas mais variadas correntes políticas que buscavam apresentar uma alternativa à social-democracia e ao bolchevismo. A hegemonia bolchevista nas organizações burocráticas que dizem representar o movimento operário relegou o conselhismo ao esquecimento junto a militantes e operários, e somente recordado como uma “doença infantil”, chamada “esquerdismo” (Lênin, 1989). Porém, sempre que há emergência do movimento operário, ocorre o ressurgimento do comunismo de conselhos, tal como na rebelião estudantil de maio de 68, no qual a idéia de autogestão fez ressurgir o interesse pela obra dos comunistas conselhistas, inclusive em um dos participantes deste processo que retomava a teoria conselhista do capitalismo de estado para explicar a posição do partido comunista francês (Cohn-Bendit e Cohn-Bendit, 1969).

Em 1947, Pannekoek escreveu sua grande obra Os Conselhos Operários, onde expressou a afirmação teórica da experiência proletária do caminho para a autogestão social. Depois disso, devido ao refluxo do movimento operário na Europa Ocidental, Pannekoek continuaria sua militância basicamente através da teoria, escrevendo e publicando textos, até seu falecimento em 1960. Dentre os teóricos revolucionários, Pannekoek foi o que mais se dedicou ao que ele denominava “novo movimento operário” fundado nos conselhos operários. Ele pode ser considerado o maior teórico dos conselhos operários e, ao contrário do que alguns críticos de esquerda do conselhismo afirmam, sua visão destas formas de auto-organização do proletariado não era fixa e acrítica. Os conselhos operários podiam ser corrompidos, tal como ocorreu na revolução bolchevique e durante a vigência do reformismo. Segundo Pannekoek, os conselhos operários
“não designa uma forma de organização fixa, elaborada de uma vez por todas, a qual só faltaria aperfeiçoar os detalhes; trata-se de um princípio, o princípio da autogestão operária das empresas e da produção. A realização deste princípio não passa, absolutamente, por uma discussão teórica referente aos seus melhores modos de execução. É uma questão de luta prática contra o aparato de dominação capitalista. Em nossos dias, por conselhos operários não se entende a associação fraternal que tem um fim em si mesma; conselhos operários quer dizer luta de classes (na qual a fraternidade tem seu lugar), ação revolucionária contra o poder do Estado” (apud. Bricianer, 1975, p. 310).

Referências Bibliográficas

BRENDEL, Cajo. Introducción. In: PANNEKOEK, Anton. Una Nueva Forma de Marxismo. Madrid, Zero, 1978.
BRICIANER, Serge (org.). Anton Pannekoek y los Consejos Obreros. Buenos Aires, Schapire, 1975.
COHN-BENDIT, D e COHN-BENDIT, G. El Izquierdismo, Remédio a la Enfermedad Senil del Comunismo. México, Americana, 1969.
ENGELS, F. Anti-Düring. 3ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.
_______. Luiz Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. São Paulo, Guaira, s/d.
KORSCH, Karl. A Filosofia de Lênin. In: PANNEKOEK, Anton. Lenin Filosófo. Buenos Aires, Ediciones Pasado y Presente, 1973.
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LÊNIN, W. O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. São Paulo, Global, 1989.
MATTICK, Paul. Anton Pannekoek. In: MATTICK, Paul e outros. Comunistas de Conselhos. Coimbra, Centelha, 1976.
PANNEKOEK, Anton. Antropogenezo. Studo pri la Ekesto de la Homo. Baudé, Laroque Timbaut, 1978
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ROSENBERG, A. Democracia e Socialismo. São Paulo, Global, 1986.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Goiânia, Edições Combate, 1997.


(*) Professor da Universidade Estadual de Goiás; Graduado em Ciências Sociais; Especialista em Filosofia; Mestre em Filosofia; Mestre em Sociologia; Doutor em Sociologia/UnB.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Podemos e Syriza: cinco diferenças e duas semelhanças


O partido liderado por Alexis Tsipras venceu as eleições gregas e conta com o apoio de outros partidos de esquerda europeus, como o Podemos, de Pablo Iglesias. Alguns meios de comunicação chegaram a dizer que o Syriza é o “Podemos grego”. É realmente assim?


Por Aitor Riveiro, tradução livre a partir de El Diario


O partido liderado por Alexis Tsipras venceu as eleições gregas e conta com o apoio de outros partidos de esquerda europeus, e também do Podemos e de seu secretário-geral, Pablo Iglesias. Alguns meios de comunicação chegaram a dizer que o Syriza é o “Podemos grego”. É realmente assim? Quais são as semelhanças e diferenças entre ambos? Estas são algumas das mais significativas.

Diferença 1: Esquerda radical frente à transversalidade ideológica

Syriza é um acrônimo de Coalizão de Esquerda Radical. O partido liderado por Alexis Tsipras se situa assim no eixo clássico esquerda-direita que o Podemos rejeita explicitamente desde sua criação. Pablo Iglesias e Íñigo Errejón têm explicado em várias ocasiões que, em sua opinião, a diferenciação clássica não gera hegemonia política, mas divide. “Nós pretendemos estar no centro do tabuleiro”, chegou a dizer o número 2 de Iglesias.

Diferença 2: Sopa de siglas ou partido?

O nome do Syriza não deixa dúvidas sobre a segunda diferença. O que é hoje um partido iniciou seu caminho em 2004 como uma coalizão de mais de uma dezena de grupos políticos de esquerda, incluindo uma dissidência do KKE, o Partido Comunista Grego. Sua forma jurídica foi a coalizão até as eleições de junho de 2012, quando se converteu em um partido, já que o regulamento local penaliza as coalizões. A lei eleitoral concede um plus de 50 deputados ao partido mais votado.

Podemos, por outro lado, rechaçou a fórmula de coalizão desde a sua origem. O documento político apresentado pela equipe liderada por Pablo Iglesias para a assembleia do último outono, aprovada por ampla maioria, deixa claro: Podemos não participará de uma “sopa de siglas ou uma negociação entre partidos”.

Diferença 3: Afiliação internacional

O Syriza não é esquerda clássica apenas da porta para dentro. É também no âmbito internacional. O partido de Tsipras está integrado ao Partido da Esquerda Europeia. Nele se aglutina boa parte das formações que identificam com a esquerda rupturista e as herdeiras do eurocomunismo. Ao Partido da Esquerda Europeia pertencem, entre outros, IU, o PCE e o EUiA da Espanha; Die Linke na Alemanha; o Partido Comunista Francês, o Bloco de Esquerda de Portugal.

Já o Podemos, até agora, não se inscreveu em nenhuma formação política internacional, ainda que no Parlamento Europeu faça parte de um grupo parlamentar com o Syriza e os demais membros do Partido da Esquerda Europeia. Seus eurodeputados formam o Grupo da Esquerda Unitária/Esquerda Verde Nórdica (GUE-NGL).

Diferença 4: Crescimento eleitoral

Syriza e Podemos são dois exemplos de rápido crescimento eleitoral, ainda que com uma diferença notável: os espanhóis assumiram a liderança das pesquisas com menos de um ano de vida, algo que os gregos levaram mais tempo para realizar.

As europeias foram as primeiras eleições das quais participou o Podemos. Entre janeiro e março de 2014, o partido de Iglesias conseguiu convencer os 1,2 milhão de visitantes (7,98%) e chegou a cinco eurodeputados. Hoje, as pesquisas situam o Podemos na disputa direta do primeiro lugar, e supera em algumas sondagens o PP e o PSOE.

Nessas mesmas eleições, o Syriza foi a força mais votada em seu país. Sua história, entretanto, foi menos fulgurante. Desde seu nascimento como coalizão, obteve resultados desiguais: entre as legislativas de 2004 e as de 2009 seus eleitores superaram os 5%.

Entre 2009 e 2012, ocorre um grande salto. Em maio de 2012, Syriza sobe para o segundo lugar. Um mês depois, são realizadas novas eleições diante da impossibilidade de se formar um governo e o partido de Tsipras continuou sua ascensão em porcentagem de votos, mas de novo teve que se conformar em ficar atrás do Nova Democracia.

Diferença 5: As trajetórias de Alexis Tsipras e Pablo Iglesias

Alexis Tsipras, líder de Syriza, e Pablo Iglesias, secretário-geral do Podemos, quase pertencem à mesma geração e tem quatro anos de diferença de idade entre si. Os cenários vividos pelos seus países nos últimos anos também têm sido semelhantes: uma ditadura militar, uma transição, a entrada na Comunidade Europeia, um crescimento econômico propiciado pela entrada no euro e uma grande crise da dívida.

A relação entre ambos é, segundo fontes do Podemos, muito boa em nível pessoal, com contatos diretos. Tsipras tomou parte, em novembro, da escolha de Iglesias como líder do Podemos. O espanhol participou do encerramento da campanha do Syriza antes das eleições de domingo (25). As citações entre ambos no Twitter são habituais.

Menos semelhanças podem ser encontradas na forma como chegaram ao cargo que ocupam agora em seus partidos. Tsipras chegou à universidade, onde foi líder estudantil, como militante do Partido Comunista Grego. De pronto, se converteu em uma figura política importante: dirigiu primeiro a juventude de um dos partidos que acabou integrando o Syriza, liderou uma candidatura unitária à prefeitura de Atenas e, finalmente, entrou no Parlamento grego.

A ascensão de Iglesias foi mais meteórica. Ainda que o líder do Podemos sempre tenha participado de uma forma ou de outra da política, seu trabalho na área sempre esteve em segundo plano. Iglesias militou na União de Juventudes Comunistas da Espanha, mas logo a abandonou. Depois se centrou mais nos estudos do que na atividade política institucional, mesmo tendo assessorado e participado ativamente nas campanhas eleitorais da Esquerda Unida, sempre em postos menores. O público começou a conhecer Iglesias a partir de 2012, de forma muito limitada a princípio, até quando, em 2014, ele anunciou sua intenção de dar um salto para a política ativa.

Semelhança 1: Moderação sobre o problema da dívida

O problema da dívida pública é um dos principais das economias espanhola e grega. Embora a magnitude não seja comparável (a Espanha deve 100% do seu PIB; a Grécia, quase 175%), tanto Syriza como Podemos compartilham uma análise similar sobre qual seria a solução. E ambos também moderaram suas propostas: do não pagamento a uma espécie de moratória, com o condicionamento do pagamento ao crescimento econômico, podendo assim dedicar mais recursos para injetá-los na economia. Um quadro definido como keynesiano e do qual partilham os dois partidos.

Semelhança 2: Fim da austeridade

Podemos e Syriza também têm semelhante postura ante às imposições da troika e dos cortes orçamentários que a Europa e o FMI impuseram aos países do sul da Europa. Tanto Iglesias como Tsipras atacaram a austeridade tida como suicida e as consequências que ela tem sobre a população.

Foto: Clara Palma Herma/El Diario