sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O sistema político em Cuba: uma democracia autêntica



Cuba constitui um sistema de poder popular único, autóctone, que não é cópia de nenhum outro

O governo do povo, pelo povo e para o povo”

(Abraham Lincoln)
Por Anita Leocadia Prestes


Ao estudar o sistema político vigente em Cuba, é necessário lembrar que seus antecedentes remontam ao ano de 1869, quando o povo da pequena ilha caribenha lutava de armas na mão pela independência do jugo colonial espanhol. Seus representantes se reuniram na parte do território já liberado e constituíram a Assembléia Legislativa, que aprovou a primeira Constituição da República de Cuba em armas. Era assim estabelecida a igualdade de todos os cidadãos perante a lei e abolida a escravidão até então existente. Essa primeira Assembléia Constituinte elegeu o Parlamento cubano daquela época e também, de forma democrática, seu Presidente, assim como o Presidente da República de Cuba em armas, designando ainda o Chefe do Exército que levaria adiante a luta pela independência.

Cuba socialista reconheceu a importância de tal herança e, inspirada também nos ensinamentos do grande pensador e líder revolucionário José Marti, chegou a criar um sistema político que constitui um Sistema de Poder Popular único, autóctone, que não é cópia de nenhum outro. Em Cuba não existem os chamados três poderes (executivo, legislativo e judiciário), característicos do sistema político burguês. Há um só poder – o poder popular. Como o povo exerce o poder? Segundo a Constituição, o povo o exerce quando aprova a Constituição e elege seus representantes e, em outros momentos, mediante as Assembléias do Poder Popular e outros órgãos que são eleitos por estas Assembléias, como é o caso do Conselho de Estado, órgão da Assembléia Nacional. Portanto, o poder popular é único e exercido através das Assembléias do Poder Popular.

Outro elemento importante do sistema político cubano é a existência, de acordo com a Constituição, de um único partido – o Partido Comunista. Não se trata de um partido eleitoral, e por isso não participa do processo eleitoral, designando ou propondo candidatos ou realizando campanha a favor de determinados candidatos. Seguindo o caminho apontado por José Marti, fundador do Partido Revolucionário Cubano - partido único como única via para conquistar a unidade de todo o povo na luta pela independência e a soberania do país, e também na luta por justiça social -, o Partido Comunista de Cuba se diferencia do conceito clássico de partidos políticos; além de não ser um partido eleitoral, é o partido dirigente da sociedade, cujas funções e cujo papel são reconhecidos pela imensa maioria do povo. A definição do seu papel está inscrita na Constituição, aprovada em referendo público, mediante voto livre, direto e secreto de 97,7% da população.

É importante ressaltar que o PC é constituído pelos cidadãos mais avançados do país, o que se garante mediante um processo de consulta das massas. São os trabalhadores que não pertencem ao PC que propõem, em assembléias, as pessoas que devem ser aceitas em suas fileiras. Depois que o Partido toma decisão sobre as propostas dos trabalhadores, se reúne novamente com eles para informá-los. Quando toma decisões em seus congressos, o PC as discutiu antes com a população. O Partido não dá ordens à Assembléia Nacional do Poder Popular nem ao Governo. O PC, após consultar o povo, sugere e propõe aos órgãos do Poder Popular e ao Governo as questões que somente a essas instituições cabe o papel de decisão.

O Parlamento cubano se apóia em cinco pilares de uma democracia genuína e verdadeira, a saber:

  • O povo propõe e nomeia livre e democraticamente os seus candidatos.
  • Os candidatos são eleitos mediante voto direto, secreto e majoritário dos eleitores.
  • O mandato dos eleitos pode ser revogado pelo povo a qualquer momento.
  • O povo controla sistematicamente os eleitos.
  • O povo participa com eles da tomada das decisões mais importantes.

O sistema do Poder Popular em Cuba é constituído pela Assembléia Nacional, as Assembléias Provinciais, as Assembléias Municipais, o Conselho Popular e a Circunscrição Eleitoral, que é o degrau básico de todo o sistema. Nenhum desses órgãos está subordinado a outro, mas todos funcionam de forma que suas funções e atividades sejam complementares, tendo em vista alcançar o objetivo de que o povo possa exercer o governo de maneira prática e efetiva.

O sistema do Poder Popular se apresenta atualmente em Cuba da seguinte maneira: no nível nacional, a Assembléia Nacional do Poder Popular; em cada uma das 14 províncias, as Assembléias Provinciais do Poder Popular e nos 169 municípios, as Assembléias Municipais; no nível de comunidade, os Conselhos Populares (1540); cada Conselho agrupa várias circunscrições eleitorais e é integrado pelos seus delegados, dirigentes de organizações de massas e representantes de entidades administrativas. No nível de base, ainda que sem formar parte de maneira orgânica da estrutura do sistema do Poder Popular, nem do Estado, tem-se a circunscrição eleitoral. A circunscrição eleitoral e o seu delegado são a peça-chave, a peça fundamental do sistema. A circunscrição se organiza para efeito das eleições, mas o delegado continua funcionando na área por ela abarcada e, por isso, a mesma continua sendo sempre denominada de circunscrição.

Participam das eleições todos os cidadãos cubanos a partir dos 16 anos de idade, que estejam em pleno gozo dos seus direitos políticos e não se incluam nas exceções previstas na Constituição e nas leis do país. Os membros das Forças Armadas têm direito a voto, a eleger e a ser eleitos. A Constituição estabelece que cada eleitor tem direito a um só voto. O voto é livre, igual e secreto. É um direito constitucional e um dever cívico, que se exerce de maneira voluntária, e quem não o fizer não pode ser punido.

Diferentemente dos sistemas eleitorais das democracias representativas burguesas, em que os candidatos aos cargos eletivos são escolhidos e apresentados pelos partidos políticos, em Cuba o direito de escolher e apresentar os candidatos a Delegados às Assembléias Municipais do Poder Popular é exclusivamente dos eleitores. Esse direito é exercido nas assembléias gerais dos eleitores das áreas de uma circunscrição eleitoral da qual eles sejam eleitores. A circunscrição eleitoral é uma divisão territorial do Município e constitui a célula fundamental do Sistema do Poder Popular. O número de circunscrições eleitorais em cada Município é determinado a partir do número de seus habitantes de maneira que o número de delegados das circunscrições à Assembléia Municipal nunca seja inferior a trinta.

O registro eleitoral em Cuba é automático, público e gratuito; todo cidadão, ao atingir os 16 anos de idade e estando em pleno gozo dos seus direitos políticos, é registrado como eleitor. Segundo a lei, no país são realizados dois tipos de eleições: 1) eleições gerais, em que são eleitos, a cada cinco anos, os Deputados à Assembléia Nacional e demais instâncias de âmbito nacional, incluindo o Conselho de Estado, assim como os Delegados às Assembléias Provinciais e Municipais e seus Presidentes e Vice-presidentes; 2) eleições parciais, a cada dois anos e meio, em que são eleitos os Delegados às Assembléias Municipais e seus Presidentes e Vice-presidentes. Deve-se assinalar que tanto os Deputados à Assembléia Nacional quanto os Delegados às Assembléias Provinciais e Municipais são eleitos diretamente pela população.

As eleições são convocadas pelo Conselho de Estado, órgão da Assembléia Nacional que a representa entre os períodos de suas sessões, executa suas decisões e cumpre as funções que a Constituição lhe atribui. Para organizar e dirigir os processos eleitorais, são designadas Comissões Eleitorais Nacional, Provinciais, Municipais, de Distritos, de Circunscrição e, em casos necessários, Especiais. A Comissão Eleitoral Nacional é designada pelo Conselho de Estado, as Comissões Provinciais e Especiais são designadas pela Comissão Eleitoral Nacional, as Comissões Eleitorais Municipais pelas Comissões Eleitorais Provinciais e assim por diante. Todos os gastos com as eleições são assumidos pelo Orçamento do Estado; portanto os candidatos nada gastam durante todo o processo eleitoral.

Para elaborar e apresentar os projetos de candidaturas de Delegados às Assembléias Provinciais e de Deputados à Assembléia Nacional e para preencher os cargos que são eleitos por elas e as Assembléias Municipais, são criadas as Comissões de Candidaturas Nacional, Provinciais e Municipais integradas por representantes das organizações de massas e de estudantes e presididas por um representante da Central de Trabalhadores de Cuba, assegurando desta maneira a direção dos trabalhadores em todo o processo eleitoral.A propaganda eleitoral é feita exclusivamente pelas Comissões Eleitorais, garantidas a todos os candidatos condições de igualdade; nenhum candidato pode fazer campanha para si próprio.

Para ser proposto como candidato a Deputado à Assembléia Nacional, é necessário ter sido apresentado como pré-candidato por uma das organizações de massas do país, que a Comissão Nacional de Candidaturas submeta essa proposta à consideração da Assembléia do Poder Popular do município correspondente, e que esta, pelo voto de mais da metade dos Delegados presentes, aprove a sua designação como candidato por esse território. Será considerado eleito Deputado à Assembléia Nacional o candidato que, tendo sido apresentado pela respectiva Assembléia Municipal, tenha obtido mais da metade dos votos válidos emitidos no Município ou Distrito Eleitoral, segundo o caso de que se trate. As eleições para os demais níveis do Poder Popular seguirão a mesma sistemática.

Em Cuba, os Deputados à Assembléia Nacional e os Delegados às demais Assembléias não recebem nenhum tipo de remuneração pelo exercício do mandato popular; continuam exercendo suas profissões em seus locais de trabalho e recebendo o salário correspondente. A Assembléia Nacional se reúne duas vezes ao ano, as Provinciais Municipais com maior frequência. Os Deputados e Delegados exercem seus mandatos junto aos seus eleitores, prestando-lhes contas periodicamente e podendo, de acordo com a Lei, serem por eles removidos a qualquer momento, desde que, em sua maioria, considerem que seus representantes não estão correspondendo aos compromissos assumidos perante o povo.

Sem espaço para um exame mais detalhado do Sistema Político de Cuba, é esclarecedor, entretanto, abordar o processo de eleição do Presidente do país, que é o Presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros. Para ser eleito Presidente, é necessário ser Deputado e, por isso, deve ter sido eleito por voto direto e secreto da população, da mesma forma que todos os 609 Deputados da Assembléia Nacional. No caso específico, por exemplo, do Presidente Fidel Castro, ele foi designado candidato pela Assembléia Municipal de Santiago de Cuba e eleito pelos eleitores de uma circunscrição do município e, além disso, eleito pela maioria, pois a Lei eleitoral estabelece que nenhum Deputado pode ser eleito sem obter mais de 50% dos votos válidos. Posteriormente, sua candidatura a Presidente do Conselho de Estado foi votada pelos Deputados, devendo alcançar mais de 50% dos votos para ser considerado eleito.

A abordagem realizada do Sistema Político de Cuba, ainda que sucinta, evidencia seu caráter popular e democrático, que é, entretanto, permanentemente distorcido e falsificado pela mídia a serviço dos interesses do grande capital internacionalizado.


Anita Leocadia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.


FONTE:  Brasil de Fato

domingo, 4 de dezembro de 2016

Problemas da construção do socialismo [Parte 2]



Por Alberto Anaya Gutiérrez, Alfonso Ríos Vázquez, Arturo López Cándido, José Roa Rosas [ * ]


II - ELEMENTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS DA TRANSIÇÃO DO CAPITALISMO AO SOCIALISMO 


Com a Revolução Russa de 1917 abriu-se uma época de transição que parecia ter terminado com o derrube do "socialismo real" na Europa oriental e na URSS. Pelo menos assim o pretenderam os agoireiros do "triunfo definitivo do capitalismo sobre o socialismo e o comunismo". Nos anos recentes, quando a modalidade neoliberal do capitalismo se esgotou e o imperialismo estadunidense desencadeou uma estratégia expansionista que colocou o sistema perante a possibilidade de uma nova crise económica de proporções semelhantes ou ainda maiores que a grande crise de 1929 - 1933, os processos de transição estão recobrando um novo impulso. Por isso é necessário examinar os elementos teóricos e práticos da transição do capitalismo ao socialismo, legados pelo pensamento marxista e peIas experiências socialistas.

1. As experiências do chamado "socialismo real" durante o século XX, assim como no pensamento socialista em geral, concentraram-se fundamentalmente no problema do crescimento económico, e ainda mais acentuadamente a partir das novas condiciones criadas peIa terceira revolução científico-tecnológica iniciada na década de 1980. Vários factores incidiram nesta orientação, entre outros: 1) a proeminência da acumulação de riqueza material própria do capitalismo, que subordina as outras esferas da vida social; 2) o facto de que as experiências de construção do socialismo tiveram lugar, na maioria dos casos, em países atrasados e predominantemente agrários, o que tornava necessária uma industrialização rápida e extensiva; 3) o incremento da pobreza nos países capitalistas como consequência da Grande Crise de 1929-1933 e a persistente depressão ao longo de toda a década; 4) a expansão acelerada do auto-denominado "capitalismo organizado" ou "Estado do bem-estar", nos principais países capitalistas, a seguir à Segunda Guerra Mundial, caracterizado pela intervenção estatal a grande escala, a planificação parcial e elevados índices de crescimento ininterrupto, e a necessidade imposta aos países do "socialismo real" de competir com aqueles no que respeita ao nível de vida; e 5) o conflito e a competição entre as duas super-potências, que consumiram imensos recursos na corrida armamentista e aero-espacial. 

Mas, além destes cinco factores, outros três de grande peso determinaram a preponderância da economia entre as preocupações do pensamento e da prática socialistas: 1º) o lugar central da produção material no próprio legado teórico de Marx e Engels; 2º) a consideração essencial de que a propriedade social dos principais meios de produção é o principal mecanismo que permite eliminar a dominação de uma classe sobre o conjunto da sociedade; e 3º) a convicção de que uma economia eficiente é requisito indispensável para conseguir os objectivos mais amplos do socialismo como a eliminação da pobreza, os serviços sociais extensivos e um elevado nível de educação e cultural e o incremento do tempo livre para a realização individual e social. 

2. Empiricamente, as transições do século XX apresentaram-se sob duas formas: 1) a radical, expressa na passagem do modo de produção capitalista ao modo de produção socialista (independentemente da sua variedade e de que o seu desenvolvimento posterior se tenha interrompido em casos importantes), através da mudança violenta nas relações de produção e nas relações entre as classes, e a substituição de uma maquinaria estatal por outra, tendo esta última outro carácter de classe; 2) a de conteúdo mais limitado, sob a forma da passagem de economias coloniais a uma situação pós-colonial.

 3. Marx estabeleceu a possibilidade de pensar o problema da transição do capitalismo ao socialismo. Com ideias disseminadas em vários dos seus textos fundamentais (o Manifesto do Partido Comunista, O Capital, A guerra civil em França e a Crítica do Programa de Gotha, entre outros), proporcionou um esquema para a teoria da transição e geral e também para a teoria da transição para o socialismo, mas não a própria teoria, nem muito menos as suas condicionantes históricas. 

4. Marx não estabelece nem analisa uma "média empírica", mas sim os modos de produção e suas relações no que constitui a sua essência, por assim dizer, em "estado puro". O que se pode designar por "impurezas" existe sempre na realidade concreta, mas — de acordo com Marx — não se pode considerar como característico de uma etapa de transição pois, em caso contrário, teríamos que aceitar que o mundo real é sempre constituído por economias de transição e portanto, o conceito de "economias de transição" perderia todo o carácter específico, todo o significado. 

5. As "impurezas" não são "sobrevivências" do passado, antes representam produtos do conjunto de relações que têm lugar entre as estruturas reais da formação económica da sociedade ou formação económico-social, fundamentalmente das desigualdades no desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção vinculadas a tais desigualdades.

 6. O problema teórico da transição tem que ser essencialmente o da passagem de um modo de produção a outro, ao processo inicial de constituição do novo modo de produção, à análise das condições básicas necessárias ao novo modo de produção para iniciar a sua constituição no seio do modo de produção dominante anterior; mas não só das estruturas económicas, mas também das sociais e políticas. O seu objecto de análise é a transformação e dissolução das relações sociais de produção existentes, e por necessidade de toda a estrutura social. Não se trata da passagem histórico-concreta, mas sim dos aspectos gerais do processo. Por esta razão, apresentam-se diferenças importantes a respeito dos processos reais de transição. 

7. A transição nunca é a sucessão de um modo de produção puro a outro, mas sim a sucessão de um modo de produção complexo com dominação, a outro igualmente complexo com dominação. Esta sucessão não está submetida a nenhuma linearidade, pois a própria complexidade das estruturas a exclui. Dito de outra maneira, não se pode estabelecer nenhuma lei de sucessão linear historicamente necessária entre os modos de produção dominantes dos sistemas complexos. 

8. Esta complexidade estende-se à escala mundial, já que cada formação económico-social nacional é em si mesma um complexo de estruturas e constitui um elodominante ou dominado da economia mundial, e as contradições que se desenvolvem num país concreto não são apenas internas, como também resultam da sua forma de inserção no complexo económico e político mundial. Desta forma de abordar a análise da transição deduziu Lenine o conceito de "elo mais fraco". 

9. A dissolução de um modo de produção mais não faz que criar as condições de aparecimento de outro modo de produção determinado. Tal dissolução não cria a necessidade deste (novo modo de produção), já que essa necessidade se inscreve mais precisamente nas transformações de uma estrutura muito mais complexa - a formação económico-social - que a simples estrutura económica; ou seja, também obedece às transformações do conjunto da estrutura social e das estruturas políticas, jurídicas e ideológicas. Deve entender-se, portanto, que a dissolução do modo de produção capitalista não cria a totalidade das condições para que lhe suceda o modo de produção socialista; é também necessário que se reunam as condições políticas e ideológicas para tal sucessão. 

10. Uma formação económico-social real é uma estrutura complexa de dominação, é uma combinação específica de vários modos de produção dos quais um é o dominante. Este modo de produção dominante condiciona o funcionamento e desenvolvimento dos modos de produção subordinados, mas por sua vez, estes influem reciprocamente sobre aquele, modificando o seu funcionamento. Estas estruturas complexas não são simples justaposições de diversos modos de produção, mas simestruturas complexas únicas ou unitárias dotadas de causalidade estrutural própria, submetidas em geral ao predomínio de uma estrutura específica que corresponde à do modo de produção dominante. Por exemplo, a França do século XIX ou o México do século XX, o que não impede de as caracterizar como formações económico-sociais capitalistas.

11. Se a presença simultânea e a interacção de vários modos de produção caracteriza qualquer formação económico-social real, também caracteriza as formações económico-sociais de transição; mas nestes casos, intervêm dois elementos suplementares fundamentais, que são o modo de dominação e as modalidades de eliminação dos modos de produção não dominantes. Por exemplo, a URSS no período de 1918-1921. Lenine assinalava a existência de cinco sistemas ou estruturas económicas diferentes: economia patriarcal, pequena economia mercantil, economia capitalista, capitalismo de Estado e economia socialista. Isto expressava uma estrutura económica complexa, mas ao mesmo tempo, uma formação económico-social de transição para o socialismo; porque na opinião de Lenine, a classe operária detinha o poder estatal e o controlo dos principais sectores da economia. Nestas condições, incluindo um certo desenvolvimento do capitalismo - na forma de concessões limitadas e controladas ao capital estrangeiro ou na forma de certo progresso do capitalismo interior - não poderia modificar a orientação predominantemente socialista, em virtude precisamente do controlo operário do Estado e das "alturas dominantes da economia". 

12. A própria economia mundial – que é a realidade económica última – constitui uma estrutura complexa (mundial) de estruturas complexas (nacionais). Isto implica que as transformações estruturais e as etapas que uma formação económico-social de transição pode percorrer, só podem apreciar-se correctamente dentro da dinâmica da totalidade estrutural mundial. Esta explica por que razão os estádios de transição de cada formação económico-social que levou a cabo a sua revolução socialista podem ser qualitativamente diferentes dos estádios "aparentemente análogos" percorridos pelos países que o precederam no mesmo caminho. Em concreto, o que estava ocorrendo na URSS as décadas de vinte ou trinta não tinha que ser necessariamente semelhante ao que se passava na China, em Cuba ou no Vietname nas décadas de sessenta e setenta do século passado, porque a economia mundial era muito diferente em ambos os períodos. 

13. As transformações económicas, sociais e de maneira significativa, políticas e ideológicas no interior de cada formação económico-social de transição para o socialismo, modificam o carácter dominante anterior do modo de produção capitalista. No entanto, este horizonte directamente interno ou nacional fez perder de vista frequentemente o inevitável carácter internacional do processo de transição do capitalismo ao socialismo. 

14. O ritmo de desenvolvimento da transição depende da estrutura das conjunturas VERIFICAR internas peIas quais passa cada formação económico-social concreta, e da estrutura das conjunturas da economia e política mundiais. Uma conjuntura que se apresenta como a fusão de um conjunto de contradições internas e externas, gera condições históricas de carácter revolucionário, tornando possível a substituição de uma formação económico-social por outra; é então que se abre um período de transição. Isto permite entender por que razão alguns países em que o capitalismo não se desenvolveu ou o fez de maneira incipiente ou débil, como consequência das contradições internas e internacionais, tiveram conjunturas favoráveis, que lhes permitiram "poupar" essa fase de desenvolvimento capitalista e passar à constituição inicial do socialismo. Por isso é indispensável a análise e a caracterização da estrutura das conjunturas.

15. As transformações económicas, sociais e políticas do período de transição são as do momento imediatamente posterior a um corte histórico, à ruptura da antiga totalidade estruturada; por isso, teórica e praticamente deve entender-se como sendo o problema "dos começos de um novo modo de produção". 

16. Como mencionamos no ponto 2, depois da Revolução Russa de 1917, o século XX mostrará dois tipos principais de transição: a de formações económico-sociais dominadas pelo capitalismo ao socialismo, e a de países coloniais ou semi-coloniais a uma situação pós-colonial. Aplicado às formações económico-sociais pós-coloniais, o termo "transição" apresentava dois significados: a) que a forma anterior de dominação era modificada sem que se modificasse a sua natureza, pelo que esta situação frequentemente desembocava em formas variadas de capitalismo de Estado; e b) que em lugar do anterior, se apresentava uma situação de equilíbrio momentâneo de forças das classes, o qual podia desembocar ou não num regime de coligação de classes, mas o carácter altamente instável de tal regime não podia ser a base sociopolítica duma nova formação social. Neste segundo caso, não se trata de uma formação económico-social de transição, mas sim de uma situação de transição caracterizada pela ausência de transformações estruturais nos planos económico, social e político. A problemática exposta neste ponto sempre foi relevante dada a persistência na estrutura capitalista mundial das relações imperialistas e do neo-colonialismo, mas nos anos recentes vem tomando uma maior importância em virtude dos processos de candidatura de coligações de centro-esquerda ao poder político em países sujeitos a um virtual domínio neocolonial, e cujo futuro próximo e a médio prazo é incerto. 

17. Nas formações económico-sociais de transição para o socialismo, o período de transição seria constituído por dois momentos: a) o estádio inicial ou período de instabilidade inicial; e b) o que Marx enunciou como o período de "consolidação social do modo de produção". O estádio inicial ou primeiro estádio do período de transição, caracteriza-se pelo desmantelamento e a ruptura final com a totalidade dominante anterior, a dominação do modo de produção capitalista, e portanto o futuro da nova formação económico-social não está assegurado ou é ainda incerto. Por outro lado, a consolidação da nova formação económico-social ou fase de transição para o socialismo propriamente dita, seria caracterizada peIa ausência de adequação relativamente extensa das novas relações sociais e das forças produtivas, o que coloca certo tipo de contradições entre a forma de propriedade e o modo real de apropriação; por outras palavras, não se verificaram ainda as condições para a reprodução ampliada das novas relações sociais. Sintetizando, o período de transição seria composto por três processos com as suas temporalidades respectivas: a) o estádio inicial; b) a fase de transição em sentido estrito ou fase de inadequação entre as novas relações sociais e as forças produtivas; e c) a fase da reprodução ampliada da nova formação económico-social socialista. Cada uma destas fases se caracteriza por uma articulação específica dos níveis da formação económico-social e das suas contradições, e portanto, de um certo tipo de desenvolvimento desigual destas contradições. 

18. Na situação de inadequação entre as novas relações sociais e as forças produtivas, a dominação das novas relações sociais só pode ser assegurada por soluções de compromisso; no caso da transição para o socialismo, recorrendo aos dois tipos extremos que são o mecanismo do mercado (por exemplo, a NEP na URSS) ou o mecanismo da planificação central (por exemplo, os primeiros planos quinquenais). Estas soluções testemunham a profundidade ainda muito grande das contradições internas. A sua solução encontra-se no desenvolvimento das forças produtivas, que assegurará a adequação entre as novas relações sociais e as correspondentes forças produtivas. Nesta direcção, o processo Ieva a que tanto o mecanismo do mercado como a planificação central possam ser substituídos por uma direcção coordenada da economia através de mecanismos originais, em cujo centro se encontrará uma planificação de novo tipo. 

19. A forma de inadequação ou não concordância entre as novas relações sociais e as forças produtivas na transição do capitalismo para o socialismo, é em termos gerais a seguinte: a forma de propriedade dos principais meios de produção é formalmente a de toda a sociedade, enquanto que o modo de apropriação real é ainda o dos colectivos limitados dos trabalhadores, já que só a nível destes colectivos (empresas) se efectua a apropriação real da natureza. A base material desta não-correspondência radica no insuficiente desenvolvimento das forças produtivas. Apesar disso, o maior desenvolvimento das forças produtivas nos sectores estratégicos da economia (energia, química, metalomecânica, transportes e comunicações, entre outras) evidencia o aparecimento de um novo modo de apropriação real, susceptível de ser ampliado ao conjunto da sociedade. 

20. O que caracteriza o período de transição no seu conjunto não é principalmente a instabilidade da nova ordem social nem a ausência de dominação das novas relações de produção, mas antes a não concordância relativamente ampla entre as novas relações sociais já dominantes e o insuficiente desenvolvimento das forças produtivas. E quanto mais débil for o nível de desenvolvimento das forças produtivas no país considerado, maior será a não concordância citada. 

21. Esta não concordância ou desfasamento tem importantes efeitos na articulação dos diferentes níveis da formação económico-social, em particular do nível político. Em tal situação de não concordância, o sistema económico apenas pode ser assegurado através de soluções de compromisso específicas. Por exemplo, durante as primeiras décadas da URSS, as soluções de compromisso de capitalismo de Estado, o mercado sob a NEP e a planificação central com os primeiros planos quinquenais. Isto tem grande importância para a análise das super-estruturas políticas do período de transição, especialmente das formas da democracia e do papel da burocracia administrativa. 

22. De acordo com o grau inicial de não correspondência e das formas específicas desta não correspondência em cada formação económico-social de transição para o socialismo, o período de transição será mais ou menos longo, e será caracterizado por um papel diferente da maquinaria burocrática e das formas diferentes da democracia socialista.

23. Portanto, é fundamental ter em conta o grau e as formas específicas de não correspondência para colocar correctamente um conjunto de problemas cruciais que, para concluir, aqui só serão enunciados: o desenvolvimento desigual das forças produtivas, o papel do mercado e da moeda, as relações entre as empresas socialistas, o papel da pequena produção mercantil e da produção propriamente capitalista nos primeiros estádios da transição, a passagem da produção mercantil a formas cooperativas, a organização da agricultura e da indústria não estratégica, a aplicação e desenvolvimento dos mecanismos de planificação, os níveis de gestão burocrática e de gestão social da economia, as relações entre as classes e entre as camadas ou estratos de uma mesma classe, as relações entre a cúpula e a base do sistema, o carácter antagónico ou secundário das contradições internas. 

***Não obstante a enorme ênfase posta na economia, o pensamento e a prática socialistas sempre conceberam o crescimento económico no contexto de uma reorganização mais integral da vida social. Isto explica que desde os seus inícios, as diversas experiências de construção do socialismo assumiram o compromisso ininterrupto de ampliar, dentro dos limites impostos pelos recursos de cada país, os serviços públicos como educação, saúde, habitação, transportes públicos, diversos serviços de bem-estar e facilidades para realização de actividades recreativas, com notável êxito. A URSS, a República Democrática Alemã e a Checoslováquia foram exemplares neste aspecto; mas igualmente a superação do analfabetismo e acesso da população aos serviços de saúde se contam entre os êxitos mais notáveis das revoluções cubana e no seu momento, a nicaraguana, apesar do seu atraso económico e da hostilização e das intervenções directas por parte dos Estados Unidos. 
Uma economia socialista deve estar ao serviço da sociedade e ter como objectivo prioritário o seu desenvolvimento. Da mesma forma, a racionalização do processo de produção com o fim de lograr o maior incremento no fluxo de bens materiais não deveria ser o elemento de maior importância sem ter em conta outras considerações igualmente significativas para o desenvolvimento da sociedade socialista, como as condições laborais ou as horas de trabalho, o meio ambiente e o eventual esgotamento dos recursos naturais, ou avaliar se o incremento da produção eleva a qualidade de vida da população. 


Na situação actual em que o debate sobre a construção do socialismo volta a ocupar o importante lugar que lhe corresponde, somos obrigados a reflectir e avaliar a fundo o rico legado da teoria e das experiências concretas ai propósito. E sobretudo não devemos esquecer que o socialismo é um processo histórico, pelo que ninguém pode prever de forma detalhada como se edificará, ou como as gerações futuras resolverão os problemas que o seu desenvolvimento futuro coloque.


[*] Responsáveis do Partido do Trabalho (México). Comunicação apresentada no X Seminário "Os partidos e uma nova sociedade", Cidade do México, 17-19 de Março de 2006. 

Tradução de Carlos Coutinho.

FONTE : Resistir.info



domingo, 27 de novembro de 2016

Fidel Castro: 90 anos como exemplo para milhões no mundo



Dizem que quando Fidel castro deu seu primeiro grito ao mundo naquele 13 de agosto de 1926, os cedros da chácara Birán balançaram suas folhas ao vento de forma diferente e alguns dos vizinhos, que foram dar as congratulações a Lina e a Ángel pela nova cria, miraram-no adormecido dentro do berço e lhe auguraram que seria um grande homem. E não se equivocaram.

O menino Fidel cresceu entre o verdor do campo, das mangas, ameixas, tamarindos e, sem explicações lógicas, ia quase todos os dias até o albergue onde estavam os haitianos que trabalhavam na fazenda, pois gostava de passar o tempo junto aos trabalhadores.

Seu caráter revolucionário começou a moldar-se com força; se indignava ante cada injustiça, e se envolvia sempre em defesa das causas justas, até que jurou tornar-se advogado para defender aos despossuídos.

Já na Universidade se tornou líder. Os estudantes o seguiam em suas ideias porque viam nele o defensor das boas causas, e quando, em 1950, se gradua como Doutor em Direito Civil e Licenciado em Direito Diplomático, se dedica fundamentalmente à defesa de pessoas e setores humildes e já é um revolucionário completo, que sofre a cada dia ante tanta afronta e opróbrio que o tirano de turno causava.

Um dia, só e em silêncio, tomou a decisão mais radical: ao governo havia que derrubá-lo com as armas.

Então começou a buscar companheiros que pensassem como ele e planejaram em silêncio um golpe contra o tirano Fulgêncio Batista, até que chegou o Dia da Santa Ana, quando Santiago de Cuba desfrutava de seus carnavais, aquele 26 de julho de 1953.

Fidel: “seremos livres ou seremos mártires”

Na noite de 25 de julho, Fidel, reunido com os revolucionários, sentenciou: “Companheiros: poderão vencer dentro de algumas horas ou serem vencidos; porém, de todas as maneiras, ouçam bem, companheiros!, de todas as maneiras o movimento triunfará. Se vencemos amanhã, se fará em breve o que Martí aspirou. Se ocorrer o contrário, o gesto servirá de exemplo ao povo de Cuba, a tomar a bandeira e seguir adiante.

“O povo nos respaldará no Oriente e em toda a ilha. Jovens do Centenário do Apóstolo! Como no 68 e no 95, aqui no Oriente damos o primeiro grito de liberdade ou morte! Vocês já conhecem os objetivos do plano.

“Sem dúvida alguma é perigoso e aquele que saia comigo daqui nesta noite deve fazê-lo por sua absoluta vontade. Ainda estão a tempo para se decidir. De todas as maneiras, alguns terão que ficar por falta de armas. Os que estejam determinados a ir, deem um passo à frente. A palavra de ordem é não matar senão por última necessidade”.

Naquele amanhecer de julho, o ataque ao quartel Moncada foi uma derrota militar, porém uma vitória política. Ainda que dezenas de combatentes foram assassinados, assinalaram o caminho para a liberdade.

Fidel, junto a outros 19 sobreviventes, tenta chegar até a Gran Piedra para continuar a luta. Depois de uma longa marcha para evitar numerosas barreiras militares e operações de rastreamento, são surpreendidos por uma patrulha de Batista, sob o mando do segundo-tenente Pedro Sarría Tartabull.

Ainda que a ordem que tinham era a de matar os prisioneiros suspeitos de terem participado no assalto, Sarría respeita a vida dos jovens gritando para seus subordinados: “Não disparem, não se mata as ideias”.

Fidel foi preso com um grupo de sobreviventes e dois anos depois saiu do cárcere com uma sentença que cumpriria: “Em 1956 seremos livres ou seremos mártires”.

Da guerrilha à Revolução

Assim se foi ao México e durante vários meses preparou uma expedição, que desembarcou nas costas do oriente cubano a 2 de dezembro de 1956, sob o assédio do exército que só umas horas depois, em Alegría de Pío, assestou um ataque demolidor contra os revolucionários, o qual obrigou a sua dispersão.

Depois, a guerrilha foi se rearmando e, depois de sua consolidação definitiva na Sierra Maestra como o Exército Rebelde, no oriente de Cuba, realizou a invasão para o ocidente e Fidel e seus homens se alçaram com o triunfo no primeiro de janeiro de 1959.

A partir desse momento Cuba e sua Revolução enfrentaram os momentos mais difíceis.

Fidel soube se impor com sua inteligência e decisão ante cada desafio: luta contra bandidos, Lei de Reforma Agrária, Lei de Reforma Urbana, Primeira e Segunda Declarações de La Habana, invasão por Playa Girón, a Crise de Outubro, imposição e recrudescimento do bloco econômico, comercial e financeiro; constantes planos de atentados, que somaram até o ano de 2007 um total de 638 tentativas de assassinato e ações terroristas.

Durante sua etapa como presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros presidiu missões oficiais cubanas em mais de 50 países e, entre 21 e 25 de janeiro de 1998, recebeu e atendeu durante sua estadia em Cuba ao papa João Paulo II.

De forma estratégica, Fidel dirigiu a participação de centenas de milhares de combatentes cubanos em missões internacionalistas em Argélia, Síria, Angola, Etiópia e outros países, e foi decisivo o aporte de Cuba ao triunfo sobre o Apartheid. Também impulsou e organizou o aporte de dezenas de milhares de médicos, professores e técnicos cubanos que prestaram e prestam serviços em mais de 40 países do Terceiro Mundo, assim como a realização de estudos em Cuba por parte de dezenas de milhares de estudantes desses países.

Lutador contra a hegemonia

O líder da Revolução cubana consolidou os programas integrais de assistência e colaboração cubana em matéria de saúde em numerosos países de África, América Latina e Caribe, e a criação em Cuba de escolas internacionais de Ciências Médicas, Desporto e Educação Física e outras disciplinas para estudantes do Terceiro Mundo.

Fidel promoveu em escala mundial a batalha do Terceiro Mundo contra a ordem econômica internacional vigente, em particular contra a dívida externa, o desperdício de recursos como consequência dos gastos militares e a globalização neoliberal, e são notáveis seus esforços pela unidade e a integração da América Latina e do Caribe.

Também liderou a ação decidida do povo cubano para enfrentar os efeitos do bloqueio econômico imposto a Cuba pelos Estados Unidos desde há mais de 55 anos e as consequências no plano econômico da derrocada da comunidade socialista europeia, e promoveu o esforço tenaz dos cubanos para superar as graves dificuldades resultantes destes fatores, sua resistência durante o chamado Período Especial e o reinício do crescimento e desenvolvimento econômico do país.

A 31 de julho de 2006 Fidel Castro fazia a entrega de suas responsabilidades por razões de saúde, e segundo suas próprias palavras havia chegado um momento em que, devido a sua enfermidade, não podia continuar à frente do governo, pelo que decidiu transferir o poder ao primeiro vice-presidente cubano naquele momento, Raúl Castro.

Desde então, Fidel Castro tem se dedicado a escrever sobre temas mundiais, o qual reafirma que continua sendo um ativo participante na luta de ideias. Por sua autoridade moral, influi em importantes e estratégicas decisões da Revolução, e aos seus 90 anos segue sendo luz para milhões de pessoas em todo o mundo.


Fonte: CubaDebate



sábado, 19 de novembro de 2016

As eleições municipais, a grande derrota do PT e os próximos passos da luta de classes no Brasil



Por Edmilson Costa


Edmilson Costa, Secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)



Os mais de 144 milhões de eleitores foram às urnas nos dois turnos no Brasil para eleger prefeitos e vereadores de 5.568 municípios. País de dimensões continentais, com 8,5 milhões de K2 e mais de 200 milhões de habitantes, com enorme diversidade em termos econômicos, sociais e regionais, as eleições municipais representam um momento importante da luta política no País e um termômetro para se avaliar o estado de ânimo da população em relação à política tradicional, muito embora essas eleições, por suas especificidades locais e pela conjuntura de crise, não tenham refletido exatamente a realidade da luta de classes no País. Isso porque essas eleições ocorreram logo após as olimpíadas, ao processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef, às denúncias seletivas da Operação Lava a Jato, à avassaladora campanha midiática de demonização do PT e de seus dirigentes, além da assimetria econômica e midiática entre as candidaturas.

Ressalte-se ainda que essas eleições foram realizadas em meio à mais grave crise econômica, social e política do último meio século, processo que se combinou com o fim de um longo ciclo de lutas sociais no Brasil, que se iniciou no final da década de 70 com as graves do ABC e que está se encerrando dramaticamente tanto com o impeachment da presidente Dilma Rousself quanto com a derrota do PT nestas eleições municipais. Além disso, em meio à crise está também se desenvolvendo, muito embora ainda de maneira embrionária, um novo ciclo de lutas que começou com as extraordinárias jornadas de junho de 2013 e que segue seu curso em busca de consolidação na conjuntura social e política. Portanto, esse conjunto de fenômenos, aliados à reforma política que reduziu o tempo de televisão dos partidos de esquerda e a redução do tempo de campanha eleitoral, contribuíram para ofuscar a disputa política eleitoral e tornaram as eleições municipais meio mornas.

Mesmo assim as eleições constituíram-se em importante posto de observação político para se aferir os principais elementos da conjuntura e avançar na compreensão sobre os próximos passos da luta social e política no Brasil. A partir dessas considerações, pode-se dizer que dessas eleições emergem quatro variáveis fundamentais da conjuntura política brasileira: a) a grande derrota do Partido dos Trabalhadores e seus satélites, bem como da política de conciliação de classes; b) a vitória das forças conservadoras, especialmente do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) nas grandes cidades, especialmente nas capitais; c) o elevado número de votos nulos, brancos e abstenções, que no geral foram maiores do que os votos dados a muitos dos candidatos vitoriosos no primeiro turno; d) a emergência bipolar da luta política nas duas principais capitais do País, São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais emergiram vitoriosos o PSDB em São Paulo e a coligação PSOL-PCB, que venceu no primeiro turno no Rio de Janeiro e perdeu no segundo;

A derrota anunciada do PT

A derrota do Partido dos Trabalhadores já era esperada pela grande maioria das forças políticas brasileiras. O que surpreendeu foi a profundidade do tombo, a extensão do fracasso e a qualidade do desastre – no segundo turno perdeu em todas as cidades em que disputou. Em 2012, última eleição municipal, o PT dirigia 630 prefeituras, onde obteve um universo de 17,2 milhões de votos, sendo parcela expressiva destes em grandes cidades. Em 2016 o PT elegeu apenas 256 prefeitos (queda de 59,4%), correspondente a 6,9 milhões de votos. Desse conjunto de prefeituras, 57,4% são cidades com menos de 10 mil habitantes. O PT era o terceiro partido com o maior número de prefeituras, caiu para 10º. lugar. Das 93 cidades com mais de 250 mil habitantes, o PT dirigia 14 delas em 2012. Nestas eleições, elegeu apenas um prefeito, no primeiro turno, na cidade de Rio Branco, capital do Acre, único Estado em que era governo e elegeu o prefeito. Perdeu as eleições em Belo Horizonte, Fortaleza e Salvador, onde governava o Estado, e em todas as cidades do ABC, berço do PT.

Mas o fracasso maior do PT não é quantitativo: é qualitativo. No Estado de São Paulo, o mais industrializado do Brasil, o PT possuía 72 prefeituras em 2012. Nas últimas eleições ganhou apenas em oito, todas elas minúsculas cidades, à exceção de Araraquara, de porte médio. Das 39 cidades da Grande São Paulo, onde se encontra o cinturão industrial do Grande ABC, o PT ganhou apenas em apenas uma pequena cidade. Mas o fracasso maior foi na capital de São Paulo, maior cidade do País, dirigida pelo prefeito do PT, Fernando Hadad. Nesta capital, o candidato do PSDB ganhou as eleições no primeiro turno, um fenômeno muito raro pelo menos nas últimas três décadas. A derrota em São Paulo teve um sabor amargo adicional, uma vez que o candidato do PT perdeu em todas as zonas eleitorais da cidade, inclusive nos tradicionais bastiões da periferia, que sempre deram a vitória à legenda de Lula da Silva.

A vitória dos conservadores

As forças conservadoras, especialmente aquelas ligadas aos usurpadores atualmente no poder, foram amplamente vitoriosas nessas eleições municipais. Souberam captar o sentimento da população contra a corrupção, a aversão aos políticos e à política em geral e, especialmente, o sentimento anti-PT de largas parcelas da população, inclusive nos bairros populares, estimulados evidentemente pela mídia corporativa, pela Operação Lava a Jato e pelas prisões midiáticas de vários dirigentes dessa organização política. Independentemente das manipulações da mídia, os conservadores aparentemente poderiam se considerar legitimados nas eleições, uma vez que a esquerda socialista não teve condições de captar esse sentimento da população, devido à falta de recursos financeiros e ausência de tempo de televisão, que os conservadores tiveram de sobra, e certa distância do proletariado.

Mas o avanço das forças conservadoras não significa que não haja contradições profundas entre as várias frações das classes dominantes. Entre esses conservadores, o grande vitorioso foi o PSDB, possivelmente por ser o partido mais ideológico e mais programático da direita brasileira, seguido pelo PMDB e outras legendas menores. O PSDB ganhou em 806 cidades e em sete grandes capitais, inclusive na principal delas que é a capital de São Paulo e o PT em uma somente. Nas 351 cidades médias, entre 50 mil e 200 mil habitantes, o PSDB novamente foi o grande vitorioso: ganhou em 70 delas, enquanto o PMDB elegeu 53 prefeitos e o PT apenas 13.

Esses dados demonstram a predominância do PSDB nas médias e grandes cidades do País, onde se concentra o grosso do proletariado brasileiro, o que também reflete a enorme erosão que o PT sofreu entre os trabalhadores dos centros urbanos. Mas esse resultado, ao contrário de levar tranquilidade às hostes da direita no poder, gera uma enorme contradição, tanto no interior do próprio PSDB quanto junto ao segundo maior partido que é o PMDB. A vitória na capital paulista fortaleceu o atual governador e pretendente a candidato a presidente em 2018, Geraldo Alckmin, que conseguiu eleger prefeito um ilustre desconhecido. Se fortaleceu na disputa interna que irá realizar com Aécio Neves e José Serra, outros dois pretendentes a candidato a presidente.

Além disso, o PSDB ganhou um protagonismo muito grande junto ao atual governo e praticamente deixou o PMDB sem opções reais para a disputa em 2018, podendo contentar-se novamente apenas com a figura de vice na chapa conservadora. O PSDB pressionará o atual governo para acelerar a política neoliberal e o ajuste fiscal, política que entrará em choque com interesses longamente consolidados, inclusive das oligarquias regionais e caciques locais, que necessitam dar algum tipo de resposta às demandas da população, até mesmo por necessidade de sobrevivência política. Com o aprofundamento da crise, a radicalidade do ajuste fiscal e os protestos da população estas contradições vão aprofundar as divisões entre as frações burguesas.

O significado dos nulos, brancos e abstenções

Um dado curioso nas eleições brasileiras e, especialmente nestas eleições, foi o aumento de votos nulos, brancos e abstenções observados nas eleições municipais. Mesmo relativizando-se que as abstenções não sejam exatamente uma atitude de protesto, pois muitos podem estar fora de seus domicílios eleitorais ou impossibilitados de votar, grande parte dessa ausência significa um desleixo ou desprezo em relação às eleições. No entanto, os votos nulos e brancos, na sua maioria absoluta, são votos de protesto contra a ordem ou mesmo porque esses eleitores não se sentem representados pela atual institucionalidade e creem que nada será mudado com o processo eleitoral. Se o voto não fosse obrigatório, as abstenções, nulos e brancos seriam muito maiores.

Para se ter uma ideia da extensão de ausentes, nulos e brancos vale dizer que esses votos superam os votos dos primeiros colocados no primeiro turno em 10 capitais do País, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte (nesses dois últimos municípios a soma superou o primeiro e o segundo colocados juntos),Curitiba, Porto Alegre, Belém Porto Velho, Campo Grande, Cuiabá e Aracaju. Em outras 11 capitais, a soma de abstenções, nulos e brancos foi maior que o segundo colocado nas eleições. Essa rejeição, principalmente pelo segmento mais jovem do eleitorado, significa uma série crise de representação, uma vez que largas parcelas da população não se sentem representadas pela atual institucionalidade política e expressam seu desapontamento dessa forma.

Outro indicador do desencanto com a institucionalidade ou com a podridão da política brasileira, com os processos de corrupção e o balcão de negócios em que se transformou o Parlamento e o Executivo brasileiro, é a desistência de milhões de jovens de se alistarem (solicitar o título de eleitor) para as eleições. Entre 2012 e 2016 ocorreu uma queda de cerca de 9% na emissão de títulos para jovens entre 16 e 17 anos. Nos primeiros seis meses de 2016 (último dado do TSE) apenas cerca de 40% de jovens dessa faixa etária foram aos tribunais eleitorais solicitar o título de eleitor, o que demonstra o desprezo da juventude pelo processo eleitoral brasileiro.

A bipolaridade dialética

Com todas as ressalvas possíveis, o resultado das eleições, especialmente nas duas principais cidades do País, São Paulo e Rio de Janeiro, demonstrou também uma bipolaridade dialética em perspectiva, ou seja, condensaram em seus resultados as contradições e perspectivas da luta política no Brasil. Em São Paulo, o PSDB teve uma vitória acachapante no primeiro turno, um fato inédito pelo menos nas últimas três décadas. O PSDB, por ser o mais programático da direita brasileira, expressou o poder das várias frações da burguesia, uma vez que é em São Paulo que está, tanto física quanto economicamente, o seu Comitê Central, mais precisamente situado na Avenida Paulista.

Paralelamente, o Rio de Janeiro também expressou o polo oposto da disputa política nestas eleições. A coligação PSOL-PCB, aliada aos movimentos sociais, à juventude e à intelectualidade progressista, com a candidatura de Marcelo Freixo, do PSOL, conseguiu derrotar os candidatos do atual prefeito carioca, do governo do Estado e do governo federal e passar para o segundo turno, num processo no qual as condições da disputa eram as mais adversas possíveis. O candidato Marcelo Freixo não tinha os recursos financeiros que os outros candidatos possuíam, não tinha tempo de televisão (apenas 11 segundos), enquanto os outros candidatos apareciam diariamente na TV. Mas Freixo possuía uma ferramenta que os outros não tinham, que era a militância guerreira que ao longo da campanha disputou nas ruas e de casa em casa o voto popular e conseguiu resultado que poucos acreditavam que ocorreria.

No entanto, no segundo turno, Freixo cometeu um grave erro político: após reunião com empresários, fez uma carta à população, a exemplo do que fez Lula em 2002, se comprometendo a respeitar os contratos estabelecidos pela Prefeitura, não aceitar indicação de partidos políticos e nomear apenas técnicos para o seu secretariado. Uma atitude inteiramente contraditória a toda a campanha realizada no primeiro turno. Não conseguiu o apoio daqueles que não votarem nele no primeiro turno e desarmou e desestimulou a militância que foi o eixo central de sua campanha no primeiro turno. O resultado dessa virada de última hora foi a derrota para um candidato obscurantista, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus.

De qualquer forma, como São Paulo e Rio de Janeiro representam os dois polos principais da luta política no Brasil, mesmo com a derrota de Freixo, há elementos que possibilitam indicar as perspectivas da luta de classes no País. Em São Paulo, firmou-se a burguesia, agora dominando tanto o governo estadual quanto o municipal. Vão exercitar a política neoliberal pura, sem tergiversação, com a criminalização dos movimentos sociais e a repressão contra os trabalhadores e as manifestações de rua, que deverão aumentar à medida em que o governo for anunciando o saco de maldades contra os trabalhadores e a juventude para privilegiar o grande capital, especialmente os rentistas. Na capital paulista está o grande bastião burguês e todo seu aparato para enfrentar o próximo período da luta de classes.

O Rio de Janeiro, por sua vez, aponta em outra direção, independentemente do resultado do segundo turno. A coligação vitoriosa da esquerda no primeiro turno foi justamente aquela que não abriu mão de seus princípios e buscou o apoio na esquerda socialista, nos movimentos sociais e na juventude. Não se rendeu às conveniências da velha política nem aos acordos com os inimigos de classe. Buscou sua energia e vitalidade nos trabalhadores e na juventude e assim demonstrou que é possível, mesmo dentro das restritivas regras burguesas, abrir caminhos para um terceiro campo, aquele que rejeita a política de conciliação de classe e enfrenta a burguesia confiando nas forças da transformação social. Por isso, a derrota de Freixo no segundo turno mais uma vez prova que no atual momento da luta de classes no País não há espaço para a conciliação de classe. Quem quiser se colocar à altura da luta de classes e buscar soluções para uma alternativa anticapitalista e classista para o Brasil terá que manter coerência no discurso e na prática.

Os novos caminhos da luta de classes

Passada as eleições, a luta de classe segue seu curso, muito vezes por caminhos tortuosos que as próprias classes em disputa não conseguem vislumbrar plenamente. As eleições foram apenas uma imagem distorcida no espelho da realidade brasileira. A verdadeira disputa vai se dar a partir agora. Embriagados pelo resultado das urnas, os conservadores vão avançar com mais truculência pela senda da barbárie social, com medidas cada vez mais impopulares, como o ajuste fiscal por 20 anos (a ironia é que até lá quase todos eles estarão mortos, mas isso mostra seu instinto de classe), a reforma da previdência, a reforma trabalhista, e reforma educacional, entrega do petróleo do pré-sal para as multinacionais, imaginando que o resultado das urnas legitimaram os interesses da burguesia e dos rentistas perante a população.

Esquecem-se, todavia, que em toda luta há um contraponto dialético. No caso brasileiro, esse contraponto é o proletariado urbano, a juventude das grandes metrópoles e o povo pobre dos bairros, justamente os setores que mais sofrerão com as medidas antipopulares do governo. Também se esqueceram de que já há uma indignação generalizada na sociedade contra esse governo (não refletida nas urnas, em função das distorções da campanha eleitoral), que se manifesta nas ocupações que até agora já atingem mais de 1.200 escolas, universidades e institutos federais de ensino, nas manifestações de rua, nos estádios de futebol, nos espetáculos musicais e teatrais, além de outros locais públicos, e até nos aeroportos quando as pessoas encontram figurões do governo e os escracham publicamente.

Essa indignação ainda difusa em algum momento irá buscar referências organizativas, como já se ensaiou embrionariamente na recente passeata da Frente Povo Sem Medo, que reuniu cerca de 100 mil pessoas em São Paulo. Não se pode esquecer que o Brasil é um País à beira de um ataque de nervos, com uma sociedade cansada do caos urbano, em função da precária mobilidade social; das terríveis condições da saúde pública; da violência e o assassinato de jovens pretos e pobres da periferia das grandes cidades; do desemprego que atinge atualmente mais de 12 milhões de trabalhadores e suas famílias; e da indignação contra a corrupção e a velha política.

Todo esse caldeirão social em ebulição vai esquentar ainda mais à medida em que os trabalhadores, aposentados, a juventude e o povo pobre dos bairros forem tomando consciência da profundidade dos ataques da burguesia contra seus direitos e garantias. Nesse momento a luta de classes vai alcançar um novo patamar. Nenhum governo pode dirigir um País por muito tempo sem legitimidade social. Mais de 60% da população estão contra esse governo. A hora em que o proletariado indignado com o desemprego, o corte de salários, redução das aposentadorias, as privatizações, tudo isso sendo feito para transferir recursos públicos para saciar o apetite voraz de uma elite parasitária rentista e do grande capital, então teremos a disputa real nas ruas, nos locais de trabalho, estudo e moradia. Não está descartado um levante social contra o governo usurpador. Esse momento poderá chegar muito antes do que imaginam os pessimistas.



sábado, 12 de novembro de 2016

Afinidades revolucionárias




Por Michel Lowy e Olivier Besancenot 


Anarquistas e comunistas: a cooperação brasileira Livro destaca episódio crucial em que uma Frente Única expulsou os fascistas da Praça da Sé, em 1934. E mais: marxismo libertário no Brasil.

Será interessante se, algum dia, historiadores brasileiros estudarem a trajetória do movimento operário no Brasil do ponto de vista das convergências, no pensamento e na ação, entre anarquistas e marxistas. Obviamente, este breve prefácio não se propõe a isso; nos limitaremos a citar um episódio importante, que merece ser mais bem conhecido e tem certo caráter exemplar.

Inspirada pelo fascismo italiano, a Aliança Integralista Brasileira (AIB) foi fundada por Plínio Salgado em 1932. Os “camisas verdes” se transformaram rapidamente num movimento fascista ameaçador, com milícias armadas e uniformizadas. Em janeiro de 1933, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), organização trotskista dirigida por Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Fúlvio e Lívio Abramo, lança a proposta de uma Frente Única Antifascista (FUA), reunindo todas as forças do movimento operário e do antifascismo.

Depois de vários encontros e acaloradas discussões, a frente é fundada em São Paulo no dia 25 de junho de 1933, com a participação da LCI, do Partido Socialista Brasileiro, criado por João Cabanas e Miguel Costa (militares que haviam participado da Coluna Prestes), da Federação Operária de São Paulo, de orientação anarcossindicalista, da União dos Trabalhadores Gráficos, além de várias organizações de exilados antifascistas italianos, alemães e húngaros. Pouco depois, aderem à FUA, participando de um meeting público, em 14 de julho de 1933, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a União da Juventude Comunista e o Socorro Vermelho.

Essa decisão, bastante contraditória com a orientação sectária do stalinismo, se deve à Juventude Comunista e ao principal dirigente comunista de São Paulo, Hermínio Sachetta*. Entre os anarquistas, representados por seus sindicatos e pelos jornais A Plebe e A Lanterna, encontram-se Edgard Leuenroth, dirigente da greve geral de 1917, Pedro Catalo, do Centro de Cultura Social, o revolucionário russo Simon Radowiztky e vários outros.

Em 1934, os integralistas anunciam sua intenção de realizar uma grande passeata e um comício na praça da Sé em 7 de outubro: uma verdadeira demonstração de força e uma provocação contra o “bolchevismo”. A Frente Única Antifascista reúne-se e decide receber os fascistas como merecem: à bala… A praça da Sé é dividida em três setores: um de responsabilidade dos militantes socialistas, outro dos comunistas e um terceiro dos trotskistas e anarquistas. Mas muitos militantes sindicalistas ou simplesmente antifascistas se juntaram na praça, sem seguir nenhuma dessas direções. Quando os integralistas chegam no local e ocupam a escadaria da Catedral com suas tropas, inicia-se um enfrentamento, com troca de tiros, deixando mortos e feridos dos dois lados. Mario Pedrosa é levado a um hospital. Edgard Leuenroth se encontra, como sempre, na primeira fila do combate. Depois de duas horas de combate, os integralistas fogem e se dispersam, muitos abandonando no caminho sua camisa verde. Não voltarão tão cedo a São Paulo…

Foi a primeira – e talvez a única – vez na história do Brasil em que socialistas, comunistas do PCB, trotskistas, anarquistas, exilados italianos, sindicalistas e antifascistas sem afiliação conseguem se unir para enfrentar o inimigo comum: o fascismo brasileiro, as “galinhas verdes” de Plínio Salgado. E alcançam uma vitória espetacular, derrotando, nas ruas, as milícias integralistas. Existem alguns pequenos livros, de circulação limitada, que narram essa história e merecem ser mais conhecidos: Frente Única Antifascista 1934-1984, de Fúlvio Abramo, e A batalha da praça da Sé, Eduardo Maffei. O primeiro é trotskista; o segundo, anarquista; divergem em alguns pontos, mas no fundamental se completam.

Entre os pensadores brasileiros que tentaram formular um “marxismo libertário” destaca-se a figura de Maurício Tragtenberg (1929-1998). Intelectual autodidata, militante comunista expulso do partido por ler escritos de Trotski, ele foi um dos fundadores, em meados dos anos 1950, com Hermínio Sachetta, de uma pequena organização de orientação “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente (LSI). A Liga costumava coorganizar, com os anarquistas Pedro Catalo e Edgard Leuenroth, do Centro de Cultura Social, meetings de Primeiro de Maio, em homenagem à memória dos Mártires de Chicago.

Embora não tivesse completado a escola primária, Tragtenberg foi aceito na Universidade de São Paulo e fez uma brilhante carreira acadêmica. Muito interessado pelo anarquismo, pelo anarcossindicalismo, pela pedagogia libertária e por Enrico Malatesta, não deixava de reclamar as ideias de Marx, que opunha à ideologia de certos pretensos “marxistas”. Podemos considerá-lo um dos mais ilustres marxistas libertários brasileiros.

Será que essa história pertence só ao passado? Não acreditamos nisso. Um exemplo mostra a atualidade dessa discussão no Brasil de hoje: o Movimento Passe Livre. Organizador das grandes manifestações contra o aumento do preço do transporte público nas capitais do pais, o MPL levou centenas de milhares de pessoas às ruas em junho de 2013 – um episódio sem precedentes na história do país.

Pequena rede organizada de forma federativa e horizontal, o MPL inclui anarquistas, marxistas e sobretudo anarco-marxistas punk. Em 2015, voltou a atrapalhar o sono das autoridades de São Paulo, organizando novos protestos contra o aumento das tarifas, sofrendo brutal repressão da polícia do Estado. A luta continua!


P.S. de Michael Löwy: Tive a grande sorte de conhecer Mario Pedrosa, Fúlvio Abramo e Pedro Catalo, assim como de tecer laços de amizade pessoal e companheirismo com Edgard Leuenroth, Hermínio Sachetta e Maurício Tragtenberg. Que as gerações futuras se apoderem de suas ideias!


Nota:

Hermínio Sachetta, jornalista, foi o dirigente do PCB de São Paulo até 1937, quando foi expulso, acusado de trotskismo. Preso durante dois anos pelo Estado Novo, participa em 1939 da fundação do Partido Socialista Revolucionário, afiliado à IV Internacional, no qual vão participar, depois de 1945, personalidades como Patrícia Galvão, Alberto Rocha Barros, Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg.


http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12125:2016-10-26-18-51-18&catid=43:resenhas&


FONTE:  Controvérsia