domingo, 27 de maio de 2018

Por um novo movimento global de trabalhadores



Mais de 40% da classe trabalhadora mundial está na economia informal
e não têm presença em movimentos sindicais à moda antiga. Novas
formas de sindicalismo terão que abordar essas classe de trabalho 
mutante.

Sindicatos perderam força; mas trabalho assalariado cresceu e ganhou ainda mais importância. Grande desafio é reconstruir — e reinventar — uma cultura de lutas

Por Marcel van der Linden | Tradução Eduardo Sukys | Imagem: Eric Drooker


Tanto o tamanho quanto a composição da classe trabalhadora mundial mudaram muito nas últimas quatro décadas. Porém, essas grandes mudanças não foram refletidas na força das organizações dos trabalhadores.

Na região que era chamada de Sul global, o acúmulo de capital resultou em um crescimento rápido de assalariados na indústria e nos setores de construção, serviços e transporte. Um estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revelou que no período de 1980 a 2005, a mão de obra no Oriente Médio e no Norte da África cresceu 149%. Na África Subsaariana, América Latina e Caribe basicamente dobrou, no Sul da Ásia aumentou 73%, e 60% no Sul e Sudeste da Ásia. (Kapsos 2007)

Enormes mudanças estão ocorrendo simultaneamente em regiões separadas. Há uma migração histórica do campo para as megacidades, já lotadas, acontecendo neste momento. Em 2000, o ministro chinês de Recursos Humanos e Seguridade Social estimou um número de 113 milhões de trabalhadores migrantes no país. Dez anos mais tarde esse número mais que dobrou e chegou a 240 milhões, incluindo 150 milhões trabalhando fora de suas áreas de residência. Desses 150 milhões, aproximadamente 72% estavam empregados nos setores de fabricação, construção, alimentos e bebidas, atacado e varejo, e hospitalidade. (CLB 2012: 4)

Na Índia, a migração do trabalho interno explodiu a partir dos anos 90, sendo que a taxa de migração temporária e sazonal era mais alta em regiões pobres como Nagaland e Madya Pradesh. (Bhagat/Mohanty 2009)

Normalmente, essas mudanças são acompanhadas por uma intensificação das dificuldades sociais. Na Indonésia, a Konfederasi Serikat Pekerja Indonesia (Confederação Sindical da Indonésia) organizou uma grave nacional no dia 3 de outubro de 2012, e uma segunda — exigindo um aumento de 50% do salário mínimo — em 31 de outubro e 1º de novembro de 2013. Não foram realmente greves, mas centenas de milhares de trabalhadores participaram do movimento, especialmente na região de Jacarta. (International Viewpoint, 4 de novembro de 2013)

Na Índia, em 20 e 21 de fevereiro de 2013, mais de 100 milhões de trabalhadores pararam em todo o país para reivindicar uma lista de demandas, incluindo um salário mínimo reajustado de acordo com a inflação, segurança alimentar universal e pagamento igualitário por um mesmo trabalho realizado. (International Viewpoint, 2 de março de 2013) Na China, a falta de empregos que começou a surgir em 2004 levou a um crescimento rápido dos protestos dos trabalhadores, que “não apenas aumentaram em número, mas mudaram o foco de uma resposta mais reativa às violações dos direitos do trabalho para demandas mais proativas por salários mais altos e condições de trabalho mais adequadas”. (CLB 2012: 5)

A Academia Chinesa de Ciências Sociais informou que houve mais de 60.000 “incidentes em massa” (protestos populares) em 2006 e mais de 80.000 em 2007. Desde então, os números oficiais não foram mais publicados, mas os especialistas acreditam que nos últimos anos esse número aumentou ainda mais. (CLB 2012: 9)

Logo após o início da crise econômica ocorreram mais de trinta greves nacionais na Grécia, enquanto Espanha e Portugal passaram por várias greves, incluindo bi e multinacionais. A dramática queda da ditadura de Mubarak no Egito em 2011 talvez não tivesse acontecido sem o apoio sólido dos movimentos dos trabalhadores. (Beinin 2011) E, na África do Sul, greves frequentemente violentas ocorriam uma após a outra.

No entanto, há um problema fundamental. A militância dos trabalhadores ainda não foi consolidada em organizações fortes. Na verdade, o trabalho “à moda antiga” está em declínio, e será necessário e realizar mudanças fundamentais antes que um movimento sindical transnacional e vibrante possa ser criado.

O estado dos sindicatos

Um sinal certeiro de que está ocorrendo a organização da classe trabalhadora é o desenvolvimento de sindicatos e grupos com interesses afins. A origem dos sindicatos independentes data do século 19, e ainda existe em muitas partes do mundo — embora também existam regiões importantes nas quais eles não têm qualquer influência.

O exemplo mais forte de uma economia capitalista em rápida expansão e sem sindicatos independentes é a República Popular da China. É lá que está a maior organização de trabalhadores do mundo, a Federação Nacional dos Sindicatos da China (ACFTU) com 230 milhões de membros. Não se trata de um sindicato independente, mas um canal de transmissão para o Partido Comunista Chinês. Grande parte dos diversos conflitos por trabalho da República Popular acontece não com o apoio da ACFTU, mas apesar dela. (Bai 2012)

The China Labour Bulletin (Boletim de Trabalho da China) chama o ACFTU de “uma causa perdida, atualmente. No geral, faltam a ele as ferramentas e estratégias necessárias para garantir uma resposta pontual e efetiva às iniciativas dos trabalhadores. Além disso, está por fora da realidade das relações atuais de trabalho na China.” (CLB 2014: 38)

Em países com organizações independentes de trabalhadores a densidade sindical (membros do sindicato como uma porcentagem da mão de obra total) vem diminuindo. A Tabela 1 reconstrói as tendências em 13 países de 1920 a 2010. Em 11 casos, o ponto mais alto está no passado (entre 1950 e 1990), embora a situação seja relativamente estável no Canadá e na Noruega. Em nove casos, podemos observar uma tendência clara de queda.


Talvez a tabela passe a impressão de que a situação é mais promissora na Índia ou na Indonésia. Porém, lembre-se de que a densidade sindical é calculada para a economia formal, e no caso da Índia isso representa cerca de 8% da mão de obra. Assim, uma densidade sindical de 41% equivale a 3,2% da mão de obra total.

Em uma escala global, a densidade sindical é praticamente insignificante. Os sindicatos independentes organizam apenas uma pequena porcentagem de seu grupo-alvo, e grande parte deles está na região relativamente rica do Atlântico Norte.

Sem dúvida, a organização guarda-chuva global mais importante é a Confederação Sindical Internacional (ITUC), fundada em 2006 após uma fusão de duas organizações mais antigas, a Confederação Internacional de Sindicatos Livres (ICFTU), orientada para uma reforma secular, e a cristã Confederação Mundial do Trabalho (WCL).

Em 2014, a ITUC estimou que cerca de 200 milhões de trabalhadores no mundo todo pertenciam a sindicatos, e que 176 milhões deles pertenciam à ITUC,(1) sendo que o número total de trabalhadores é de 2,9 bilhões (1,2 bilhão deles na economia informal). Portanto, a densidade sindical global representa atualmente não mais do que 7%! (ITUC 2014: 8)
Alguns fatores colaboram com essa fraqueza. Primeiro, a composição da classe trabalhadora está mudando. Os sindicatos têm dificuldade em organizar os funcionários no setor financeiro ou de serviços. A economia informal em rápida expansão está complicando ainda mais a situação, uma vez que os trabalhadores mudam de emprego com frequência, e precisam conquistar sua renda em condições frequentemente precárias.

Outro fator importante é o que o economista do trabalho, Richard Freeman, chamou de “choque do fornecimento de trabalho”, algo que se manifestou desde o início dos anos 90. Com a entrada de trabalhadores chineses, indianos, russos e de outros locais na economia global, o número de trabalhadores que produzem para os mercados internacionais nas últimas duas décadas praticamente dobrou.

Uma queda na proporção global entre capital e trabalho muda o equilíbrio de poder nos mercados, reduzindo os salários pagos aos trabalhadores, já que mais trabalhadores competem para trabalhar com esse capital. […] Mesmo considerando a alta taxa de poupança dos novos participantes — o Banco Mundial estima que a China tenha uma taxa de poupança de 40% de seu PIB — vai levar 30 anos ou mais para que o mundo recupere a proporção de capital/trabalho existente entre os países que formaram anteriormente a economia global. Os mercados de trabalho do mundo todo estão sob forte pressão, pois há o dobro de trabalhadores e praticamente a mesma quantidade de capital. Essa pressão afetará os trabalhadores nos países em desenvolvimento que já participavam tradicionalmente da economia global, além de trabalhadores em países desenvolvidos. (Freeman 2010)

Segundo, ocorreram mudanças consideráveis na economia. O crescimento de investimento direto estrangeiro nos países centrais e nos semiperiféricos da economia mundial foi impressionante, e ocorreu a multiplicação de corporações transnacionais e blocos comerciais com vários países (EU, NAFTA, Mercosul etc.). Brasil, Índia e especialmente China são novos personagens importantes que mudaram as regras do jogo. Isso vem acompanhado de novas instituições supranacionais, como a Organização Mundial do Comércio, fundada em 1995.

Terceiro, os sindicatos à moda antiga precisam enfrentar cada vez mais competição de estruturas alternativas. No Brasil, na África do Sul, nas Filipinas e na Coreia do Sul surgiram novos movimentos de trabalhadores, muitas vezes militantes (sindicatos de movimentos sociais). (Scipes 2014) Novas formas de sindicalismo de base fora dos canais estabelecidos apareceram a partir dos anos 70, com conexões internacionais no nível da classe trabalhadora “ignorando completamente os secretariados, que consideram frequentemente atados às burocracias de seus vários afiliados nacionais”. (Herod 1997: 184)

Um exemplo bem conhecido é o da Transnational Information Exchange (TIE), um centro no qual um número considerável de grupos de trabalho de pesquisa e ativismo trocam informações sobre empresas transnacionais. Outro exemplo é a “contra política externa” existente desde o início dos anos 80 no AFL-CIO. (Spalding 1992) Também devo mencionar o número cada vez maior de atividades realizadas por organizações não governamentais (ONGs) e que deveriam ser de responsabilidade, pelo menos em teoria, do movimento sindical internacional — por exemplo, a luta para regular e abolir o trabalho infantil.

A ineficácia dos sindicatos à moda antiga é enfatizada por uma tendência crescente por parte dos sindicatos globais (antes chamados de secretariados internacionais) de participar do recrutamento direto de membros na periferia. Pense, por exemplo, nas atividades da Union Network International (o sindicato global para o setor de serviços) relacionadas a especialistas em TI na Índia. (Süddeutsche Zeitung, 8 e 9 de setembro de 2001)

O destino dos partidos dos trabalhadores

Outra expressão da formação de classe é política por natureza. Normalmente, os partidos de Trabalhadores, Social-Democratas e Comunistas são considerados representantes políticos da classe trabalhadora.

Do ponto de vista eleitoral, os partidos mais antigos, Social-Democrata e de Trabalhadores, não estão muito bem. A maioria deles atingiu seu ápice entre 1940 e 1989; Na Suíça aconteceu antes (1930), enquanto em Portugal foi mais tarde (no início do século 21). A única exceção (até recentemente) é o Partido dos Trabalhadores brasileiro.(2)

No entanto, o mais importante é que essa família de partidos está lutando com um problema de identidade fundamental. Desde os anos 30 a 40 as políticas Social Democráticas e de Trabalho têm base em dois pilares: keynesianismo social e uma subcultura específica de partido “vermelho” com suas próprias associações esportivas, clubes para mulheres, organizações para amantes da natureza, cooperativas de consumidores, jornais, grupos de teatro etc.

A inversão sociocultural e econômica desde os anos 60-70 derrubou os dois “pilares”. As redes subculturais dos partidos se desfizeram e o keynesianismo social tornou-se o menor possível. Muitos desafios tiveram que ser resolvidos mais um ou menos ao mesmo tempo. Foi necessário reconciliar o centralismo tradicional com os movimentos democráticos de base, e o feminismo com a cultura androcêntrica convencional.

Além disso, o movimento ambiental precisava ser levado a sério sem abandonar a busca por crescimento econômico (a condição de redistribuição social em um contexto capitalista). A confusão generalizada resultou em um grande aumento de eleitores que mudam seu voto de um partido ou bloco político e outro; no envelhecimento e diminuição dos militantes; e no quase desaparecimento dos membros proletários ativos.

Paradoxalmente, essa perda de identidade explica o crescimento explosivo da organização guarda-chuva Internacional Socialista (IS). Desde os anos 70, o número de países com membros da IS mais do que dobrou. Isso é impressionante, pois a associação à IS era bastante instável nas décadas anteriores. Nos anos de 1951 a 1976, o número de partidos filiados sempre flutuou entre 34 (em sua fundação em Frankfurt) e 39. (van der Linden 2006)

A maioria dos partidos associados à IS após 1976 não se enquadrou ao perfil antigo da organização. Antes da metade dos anos 70 ninguém consideraria movimentos antes associados à guerrilha, como o Movimento Popular para a Liberação da Angola (MPLA), a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) ou a conservadora Ação Democrática da Venezuela, como partidos Social-Democratas. Essas organizações puderam encontrar abrigo na IS, pois seu perfil já estava se esvanecendo.

Essa diluição tornou-se oficial quando a IS adotou uma nova “Declaração de princípios” no 18º Congresso em Estocolmo, 1989, que reconhece a existência de “diferenças” entre as “culturas e ideologias” dos membros, mas enfatiza também que os valores fundamentais da IS (paz, liberdade, justiça e solidariedade) “têm origem nos movimento dos trabalhadores, em movimentos de liberação popular, tradições culturais de assistência mútua e solidariedade comunitária em várias partes do mundo”. Resumindo, a Internacional Socialista conseguiu crescer tanto apenas porque os partidos Sociais-Democratas clássicos estavam passando por uma profunda crise de identidade.

Os partidos comunistas representam o segundo sistema político de maior destaque. A grande maioria deles nasceu ou desenvolveu-se consideravelmente em três momentos: durante cinco anos, de 1918 a 1923, como resultado da Revolução Soviética; nos anos 30, como resposta à depressão econômica; e logo após a Segunda Guerra Mundial. Alguns destes partidos ainda têm uma base sólida, normalmente pequena — por exemplo, em Portugal, Espanha e Grécia. Todos eles se desenvolveram sob ditaduras de direita e têm como característica a intransigência. De forma parecida, o influente Partido Comunista da África do Sul ainda tem influência sobre a política do Congresso Nacional Africano.

No entanto, para a maioria dos partidos, o auge foi nos anos 40. Em alguns países os partidos foram dissolvidos após fracassos eleitorais, separações ou falência financeira. Esse foi o caso na Grã-Bretanha (dissolvido em 1991), Itália (desmembrado em 1991), Finlândia (falência em 1992), Brasil (golpe interno e separação em 1992). Outros partidos passaram por fusões, por exemplo, no México (resultando no Partido Socialista Unificado, 1981), na Dinamarca (formação da Aliança Vermelha e Verde em 1989) e na Holanda (resultando no Partido Verde de Esquerda em 1989).

Mesmo o CPI-M (Partido Comunista da Índia Marxista) em Bengala Ocidental, que recebeu a maioria dos votos em várias eleições (1971, 1980, 1989-2004) agora é um personagem secundário (duas de 42 cadeiras!) devido as suas violentas políticas neoliberais.

Causas do enfraquecimento do sindicalismo

Minha hipótese é de que o sindicalismo à moda antiga e os partidos de trabalhadores à moda antiga, conforme descrito acima, não atendem mais aos desafios impostos pelo mundo contemporâneo. Os desafios neoliberais e da globalização exigem novas políticas e práticas que, aparentemente, eles não podem oferecer. Por isso, estão em crise. Aqui, tentarei apenas fundamentar essa crítica aos sindicatos, não aos partidos (isso eu já fiz parcialmente em van der Linden 2003: 95-116).

Vejo pelo menos duas grandes dificuldades. Para começar, a trajetória histórica dos sindicatos, assim como de outras organizações, é moldada até certo ponto por seu momento de fundação. Arthur Stinchcombe observou isso meio século atrás:

“As invenções organizacionais que podem ser feitas em um período particular da história dependem da tecnologia social disponível no momento. Organizações com propósitos que podem ser atingidos de forma eficiente com as formas organizacionais socialmente possíveis tendem a serem fundadas durante o período em que exista a possibilidade. Assim, como elas podem funcionar de maneira eficiente com essas formas organizacionais, e como essas formas tendem a se tornarem institucionalizadas, a estrutura básica da organização tende a permanecer relativamente estável.” (Stinchcombe 1965: 153; também Scoville 1973: 74)

Os primeiros sindicatos na Europa e na América do Norte foram principalmente criações de trabalhadores brancos altamente qualificados, que tinham um único chefe, eram relativamente influentes na linha de produção e tentaram estabelecer barganhas coletivas. Esse foi um modelo extremamente bem-sucedido e mais tarde inspirou também outras seções das classes trabalhadoras (mulheres, negros e pessoas com pouca qualificação).

Tornou-se a norma para os sindicatos do mundo todo. No entanto, o contexto histórico específico no qual esse modelo foi construído foi esquecido e, assim, “uma crença ingênua da aplicabilidade universal de alguma forma de barganha coletiva” (Sturmthal 1973: 5) tornou-se mais ou menos universal. Adolf Sturmthal (1973: 9) listou uma série de condições para “um sistema de barganha coletiva genuíno”, incluindo “um sistema legal e político que permitisse a existência e o funcionamento de organizações trabalhistas relativamente livres” e a exigência de que “os sindicatos fossem mais ou menos estáveis, relativamente bem organizados e com uma força de barganha similar a do empregador.” Porém:

“Raramente, para não dizer nunca, sindicatos efetivos foram organizados por trabalhadores “não comprometidos”, ou seja, trabalhadores casuais que trocam de trabalho frequentemente, voltam periodicamente às suas cidades de origem e não possuem habilidades industriais específicas, mesmo as mais simples. Ainda assim, trabalhadores industriais totalmente comprometidos com pouca ou nenhuma habilidade são capazes de participar de barganhas coletivas mediante certas condições, raramente encontradas. Na maioria (definitivamente não em todos) os países recém-industrializados, uma grande quantidade de mão de obra comum está disponível para trabalhos não relacionados à agricultura. Raramente os trabalhadores não qualificados são capazes de formar sindicatos próprios nessas condições, mas quando conseguem, seus sindicatos têm pouco ou nenhum poder de barganha."(Sturmthal 1973: 10)

Esse é provavelmente o X da questão. Nos países capitalistas mais avançados, as relações entre emprego e padrão, que se tornaram dominantes entre os anos 40 e 70, gradualmente perdem a força, enquanto o trabalho casual e informal sempre foi regra na África, Ásia e América Latina. (van der Linden 2014; Breman/van der Linden 2014)

Outra dificuldade é que os sindicatos à moda antiga, ao tornarem-se um tanto quanto entranhados em seus estados-nações de origem, consideram muito difícil lidar com a transnacionalização do capital. A globalização estimulou novas formas de organização entre fronteiras que desafiaram os modelos tradicionais.

Já na metade dos anos 60 a influência crescente das transnacionais estimulou o estabelecimento de Conselhos Corporativos mundiais, principalmente nos setores químicos e automotivos. Apesar da grande expectativa por parte dos militantes sindicalistas sobre essas novas organizações, sua eficácia foi muito menor do que o esperado graças a conflitos de interesse de funcionários em vários países. (Tudyka 1986; Bendiner 1987; Olle/Schoeller 1987)

A formação de blocos comerciais resultou em certo equilíbrio de parâmetros legais e políticos. Dessa forma, a construção de estruturas sindicais transnacionais em cada bloco era um passo óbvio. Normalmente, essa colaboração não evolui no nível das principais confederações sindicais nacionais, mas sim no nível subnacional ou em ramificações. Em muitos casos, instituições que não são sindicatos (como organizações religiosas e de direitos humanos) também são parceiras em projetos desse tipo. Entre os exemplos estão a Coalizão por Justiça nos Maquiladores, o Comité Frontizero de Obreras e La Mujer Obrera, todos nos anos 80. (Armbruster 1995: 80-2; Borgers 1996: 81-5; Carr 1999)

Nesse contexto também tem importância o Conselho de Trabalhadores da Ford (Council of Ford Workers), fundado pelo United Auto Workers (Bina/Davis 1993: 165-6). Ações conjuntas dos sindicatos contra as transnacionais, como uma representação de ocupações específicas em países diferentes (por exemplo, mineradores de carvão, trabalhadores do setor elétrico) também se tornaram muito mais frequentes nas últimas décadas. (Herod 1995: 342; Armbruster 1995)
Quando a montadora francesa Renault anunciou o fechamento de sua fábrica na Bélgica em fevereiro de 1997, foram organizadas greves de solidariedade e manifestações na França, Espanha, Portugal e Eslovênia, dando origem ao novo termo “Euro-strike” (Euro-greve) (Imig/Tarrow 2001) Embora os sindicatos apoiassem essas ações, não desempenhavam uma função de liderança nelas.

De acordo com Stinchcombe (1965: 154), “um exame da história de praticamente qualquer tipo de organização mostra que há grandes surtos de criação de organizações do tipo, seguido por um período de crescimento relativamente inferior, talvez com novos surtos na sequência, geralmente de um tipo fundamentalmente diferente de organização, mas no mesmo campo.” Talvez o grande surto de sindicatos à moda antiga já tenha se esgotado e um novo surto de um novo tipo de sindicalismo “esteja no ar”.(4)

Perspectivas para o sindicalismo transnacional revitalizado

Quais são os desafios que um sindicalismo renovado terá que enfrentar? Primeiro, terá que desenvolver uma visão clara de onde quer chegar. A revitalização exige propostas políticas convincentes que expressem solidariedade entre diferentes segmentos da classe trabalhadora dentro países e continentes e entre eles.

Segundo, há a composição em mudança da classe trabalhadora mundial. Até agora, as organizações de trabalhadores dos países da OECD dominaram a Confederação Sindical Internacional. Mas sua fatia na força de trabalho mundial está diminuindo. Cada vez mais assalariados vivem na Ásia, África e América Latina. E uma proporção cada vez maior desses trabalhadores é mulher (Tabela 2).




Mais de 40% da classe trabalhadora mundial (1,2 de 2,9 bilhões de funcionários) está ativa na economia informal, e praticamente não têm presença em movimentos sindicais à moda antiga.

Novas formas de sindicalismo terão que abordar essa classe de trabalho mutante. A primeira fase da demarcação das classes trabalhadoras foi extremamente restrita e centrada na Europa, por isso precisa ser revisada e expandida. (Antunes 2013: 80-95) Não deve restar dúvidas de que o grupo-alvo recém-definido não deve mais ser dominado por trabalhadores brancos na região do Atlântico Norte, mas por mulheres e pessoas de outras etnias, muitas envolvidas em formas ocultas de trabalho assalariado, trabalhos precários ou escravidão por dívida. Muitos sindicatos na periferia e na semiperiferia abandonaram os antigos limites e começaram a recrutar todos os tipos de trabalhadores “não tradicionais”.

Uma definição mais ampla do grupo-alvo levará necessariamente a uma mudança drástica dos sistemas de operação dos sindicatos, a fim de auxiliar esses trabalhadores a ampliar ainda mais seus interesses. Isso também significa acabar com a ênfase em estratégias de barganha coletiva.(Hensman 2001) É bem possível que disposições mutualistas recebam prioridade em muitos casos — ou seja, formas de organização que se concentrem em um seguro mútuo contra doença, incapacidade e desemprego, algo de destaque nos movimentos de trabalho europeus e norte americanos nos séculos 18 e 19. (van der Linden 2008: 109-31)

Talvez seja possível aprender muito com o “sindicalismo ocupacional” que precedeu o sindicalismo industrial do século 20. (Cobble/Vosko 2000) Jeffrey Harrod vê “o início de organizações coletivas voltadas ao aprimoramento das condições materiais, mas sem base direta em fatores de trabalho e produção”. Ele menciona, por exemplo, redes “extraeconômicas” de jovens japoneses desempregados, cuja atividade social está centrada em cafés internet; e grupos indianos de trabalhadores casuais que pressionam o Estado por uma proteção maior. (Herod 2014: 13-14)

Alguns sindicatos à moda antiga já tentam se abrir para essas evoluções, mas de forma hesitante. Na Itália, as confederações sindicais CGIL e CISL criaram estruturas especiais para a representação de trabalhadores “atípicos”; e o sindicato dos funcionários austríacos, GPA, agora recebe “trabalhadores autônomos”. (Cella 2012: 180)

Uma mudança final necessária diz respeito às estruturas e culturas organizacionais. Primeiro, a estrutura dupla do movimento sindical internacional — colaboração de confederações nacionais e sindicatos globais — é um relíquia problemática do passado, e precisa ser descartada. Provavelmente, a melhor opção seria uma nova estrutura unitária que facilitasse a inclusão de “novos” grupos-alvo nos secretariados internacionais.

Segundo, a abordagem um tanto autocrática que prevalece no movimento sindical internacional atual precisará ser substituída por uma abordagem democrática, e por uma participação maior dos trabalhadores de base. As possibilidades oferecidas pela internet representam uma colaboração positiva para a criação de uma estrutura renovada desse tipo. (Lee 1997)

Terceiro, e mais importante, novos métodos de ação coletiva, especialmente entre fronteiras, precisam ser empregados. Embora a principal atividade do movimento sindical internacional tenha sido até hoje (com a exceção notável da campanha antiapartheid dos anos 80) a realização de lobby com governos e organizações transnacionais, e tenham sido despendidos esforços para cultivar a boa vontade dos Estados (Greenfield, 1989), uma ação efetiva exige muito mais esforço em medidas ativas como boicotes, greves etc., o que, por outro lado, demandam um fortalecimento substancial das estruturas internas.

Como Dimitris Stevis (1998: 66) observou corretamente, as organizações de trabalho internacionais “não são simplesmente gigantes adormecidos, mas federações intersociais fundamentalmente fracas”.

A questão é se o movimento sindical internacional existente pode atender a esses desafios. Provavelmente, um novo surto no desenvolvimento sindical será um processo difícil, intercalado com experimentos sem sucesso e momentos de crise profunda. Estruturas organizacionais e padrões de comportamento existentes há mais de um século não são fáceis de mudar.

Além disso, é altamente improvável que novas estruturas e padrões sejam moldados por meio de reformas que aconteçam de cima pra baixo, por meio da liderança central. Se há uma coisa que a história nos ensinou é que as estruturas sindicais quase nunca surgem tranquilamente por meio de engenharia social. Normalmente, elas são o resultado de conflitos e experimentos arriscados.

A pressão proveniente de baixo, por meio de redes competitivas, modelos de ação alternativos etc., será um fator muito importante para a definição desse resultado. Quais formas essa pressão assumirá e se será suficiente para gerar mudanças importantes, ninguém pode dizer com certeza.


Notas

1.   Provavelmente esse cálculo conduz ao erro.
2. Uma parte considerável, mas desconhecida, da associação sindical é formada por aposentados.
O sucesso do PT pode ser um artefato estatístico. Entre 2000 e 2009 houve duas eleições para a câmara dos deputados brasileira. Em 2002, o PT alcançou seu maior resultado (18,4%), mas a média da década caiu devido ao resultado ruim de 2006 (15,0%). Apesar de o PT ter conquistado 16,9% dos votos em 2010, na eleição de 2014 seus votos para a câmara dos deputados caíram para 14%.
3. As chances de que novos partidos dos trabalhadores sejam estabelecidos em breve parecem pequenas.
4. Certa vez, Eric Hobsbawm afirmou que os partidos dos trabalhadores com um enorme número de seguidores surgiram principalmente em um período específico da história, entre 1880 e os anos 30. “Esses partidos, ou seus sucessores, ainda existem e são em muitos casos influentes, mas nos locais onde eles não existiam, ou onde a influência de socialistas/comunistas foi considerável nos movimentos de trabalhadores antes da Segunda Guerra Mundial, praticamente nenhum partido surgiu das classes trabalhadoras desde então, principalmente no chamado ‘Terceiro Mundo’”. (Hobsbawm 1984: 60) A exceção mais importante a essa regra foi na formação do Partido dos Trabalhadores no Brasil em 1980, que conquistou uma quantidade considerável de seguidores. Não podemos excluir a possibilidade de que a experiência brasileira será repetida em outros locais, mas no momento não há indícios de que isso acontecerá. Por enquanto, parece que os sindicatos terão que depender totalmente de sua própria força.
5. Talvez possamos considerar todos esse processo como um exemplo de “a desvantagem de um vantagem inicial” ou do desenvolvimento desigual e combinado. Veja van der Linden 2007.


domingo, 20 de maio de 2018

Julgamentos Históricos: Sacco e Vanzetti, condenados pela ira do capitalismo norteamericano




Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram presos, acusados e posteriormente condenados à morte. No júri, antes mesmo dos debates se iniciarem, a atmosfera declarada a tal fato mostra os males de uma sociedade em crise de desenvolvimento.



Por Cidânia Aparecida Locatelli 


Estamos no ano de 1920 no Estado de Massachusetts, Estados Unidos da América. Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram presos, acusados e posteriormente condenados à morte. No júri, antes mesmo dos debates se iniciarem, a atmosfera declarada a tal fato mostra os males de uma sociedade em crise de desenvolvimento.  

Os Estados Unidos do imediato pós-guerra eram representados de forma clara pelo estado do Massachusetts, sendo que Sacco e Vanzetti eram os exemplos vivos dos problemas enfrentados na sociedade e que agora resultaria em um grande debate no qual os envolvidos se perguntam até que ponto a acusação ou absolvição não terá envolvimento com a questão política enraizada na vida desses dois italianos. 

Mas quem eram estes dois italianos? Sacco era filho de camponeses pobres italianos, emigrou para a “América” em 1908, aos 17 anos. Viveu períodos de grandes dificuldades (chegando a passar fome, desemprego e muita miséria), trabalhou em diversas fábricas, como em uma de sapatos na qual conheceu sua companheira, com quem teve seus dois filhos. Sacco chegou a participar da Federação Socialista Italiana, mas logo se envolveu com a prática sindicalista revolucionária e anarquista. 

Bartolomeu Vanzetti, por sua vez, quando jovem, teve um envolvimento com ideias religiosas e humanistas. No entanto, gostava muito de estudar e logo se desligou de qualquer instituição religiosa. Emigrou para os Estados Unidos aos 20 anos, fato que levou a uma profunda transformação em sua vida. Segundo Vanzetti, na América viu “todas as brutalidades da vida, todas as injustiças e as depravações em que se debate tragicamente a humanidade”. E decidiu dedicar-se física e intelectualmente, chegando a estudar importantes teóricos de sua época como Bakunin, Marx, Kropotkin, Gorki, Mazzini, Tolstoi, Leopardi, Darwin, dentre outros. Leu grande parte destas obras nas madrugadas, após longas jornadas de trabalho na fábrica, debruçado sobre um livro à luz de velas. Vanzetti se tornou um convicto anarquista e importante liderança no movimento operário. 


Os Estados Unidos viviam uma guerra interna marcada pelo desemprego, miséria e criminalidade, o que acabou gerando um confronto entre grupos comunistas e anarquistas e as altas classes do capitalismo norte-americano. Para se ter uma ideia, no dia 2 janeiro de 1920 realizou-se batidas policiais em 33 cidades. Foram expedidos mais de 6 mil pedidos de prisão e relacionadas os nomes de mais de 3 mil estrangeiros para deportação. Em Boston, cerca de 500 imigrantes marcharam acorrentados até a casa de correção. 

A classe média – insuflada pela grande burguesia – temia pela sua situação privilegiada. Sentia-se ameaçada pela massa de imigrantes provinda da Europa. Eram espanhóis, portugueses e, especialmente, italianos. Além de sua fisionomia e língua latinas, traziam estranhas ideias que colocavam em risco a ordem e o modo de vida norte-americano: o anarquismo e o socialismo. 

No dia 15 de abril 1920 ocorreu um assalto a uma fábrica de calçados na cidade de South Braintree, no Estado de Massachussets. Na ocasião, o agente pagador e um segurança da empresa acabaram sendo mortos. Tudo indicava que esse era mais um crime realizado por uma das muitas quadrilhas que infernizavam a vida de fabricantes e comerciantes. A “boa sociedade” impaciente e amedrontada com a escalada de violência exigia uma rápida solução para o caso. 

Algumas semanas depois, em 5 de maio, dois homens foram presos próximos de Boston. Para sua desgraça estavam armados, coisa comum para a maioria dos norte-americanos. No entanto, havia três outros fatos graves que pesavam contra eles: eram operários, estrangeiros e anarquistas. O estereótipo de tudo aquilo que não deveria ser um cidadão estadunidense modelo. Seus nomes eram Nicolás Sacco e Bartolomeu Vanzetti. De início foram acusados por porte de arma ilegal e em seguida acusados de dois assassinatos ocorridos em meados de abril do mesmo ano. 



O caso teve repercussão internacional entre as capitais europeias de Paris a Berlim, De Roma a Estocolmo, de Berna ao Vaticano. A grande imprensa americana imediatamente passou a divulgar a prisão dos “bandidos italianos” e a sua filiação anarquista como prova moral de propensão à criminalidade e delinquência. Essa erupção de opiniões próprias envolvendo um estado norte-americano só fez com que a situação dos dois se agravasse ainda mais, pois a sociedade acreditava que as sementes da anarquia poderiam brotar nos Estados Unidos (justamente neste tempo a Máfia vinha se instalando de forma assustadora e com uma crueldade impiedosa), impondo até mesmo sua lei à justiça americana. A própria justiça não é a mesma para o autóctone e o estrangeiro, sabendo que o juiz tem a tendência de valorizar muito mais as opiniões e posições dos nacionais do que a dos estrangeiros.  

O juiz nomeado para o caso é Webster Thayer, que não se mostra inclinado à imparcialidade e compreensão. Frederick Katzmann, o procurador do distrito, é um burguês agarrado as suas tradições e fiel as suas ideias, controlando as principais atividades do Estado de Massachusetts. Os advogados de defesa são Fred H. Moore e Willian J. Callahan, em defesa de Sacco; Jeremiah J. Thomas e Fred MacAnarney, por Vanzetti. O julgamento terá início no dia 31 de maio de 1921, às 10 horas, faltando ainda a escolha dos doze jurados. As dificuldades da constituição do júri logo aparecem, motivados principalmente por duas razões: alguns jurados tinham receio de represálias por parte dos amigos dos anarquistas e outros apenas não tinham interesse de se envolverem neste julgamento, que demanda muito tempo, pois os participantes não poderiam voltar às suas casas ou local de trabalho.  

Após a montagem do júri, o julgamento enfim começa com a reconstituição do caso.  A pequena cidade de South Braintree é onde se encontra uma das mais importantes fábricas de calçado, chamada Slater e Morril. Duas vezes por mês, o montante dos pagamentos dos operários é transferido de um prédio a outro da empresa por Frederick Parmenter e seu guarda-costas Alexandre Berardelli. Os dois homens deixam o prédio superior às 15 horas do dia 15 abril de 1920, onde pouco tempo depois um Buick preto para próximo a eles e descem do carro dois homens armados. Um deles usa boné e o outro chapéu de feltro, dissimulando suas feições. Sem tempo para reação, o homem do boné dispara três tiros em Berardelli e Parmenter leva um no peito. Os agressores os deixam caídos no chão, ainda vivos, pegam nas duas caixas e entram no Buick que se afasta em grande velocidade. As únicas pistas deixadas pelo assassino são um boné e as balas utilizadas no crime. 

Tais provas, porém, seriam insuficientes para criar problemas aos dois italianos durante o julgamento. Mas uma série de circunstâncias inesperadas fez com que os dois fossem acusados e agora estivessem perante o tribunal. Durante a operação “Johnson”, que prendeu Sacco e Vanzetti, fora encontrado com Vanzetti um revólver Harrington-Richardson de calibre 38, com cinco balas no carregador e com Sacco uma pistola automática calibre 32 (o mesmo de uma das balas que matou Parmenter), vinte e três balas e um rascunho que confirma a sua qualidade de anarquista. Bastou isso para que não conseguissem mais escapar da implacável série de formalidades que fatalmente os levou aos Tribunais e a uma futura condenação. A acusação é formal e caberá aos juízes determinar que pena lhes será imposta pelo crime.  

No entanto, após a prisão, a polícia tentou relacionar o ocorrido em South Braintree com um suposto roubo em South Bridgewater, sendo Vanzetti e Sacco acusados também de participarem desse delito. Sacco demonstrou durante o julgamento que estava trabalhando durante o horário desse crime, sendo absolvido do delito. Vanzetti, por instrução do advogado, permaneceu em silêncio, fazendo com que os jurados entendessem por sua culpa, levando o juiz Webster Thayer (que iria ser o mesmo juiz do caso South Braintree), no dia 01 de julho de 1920, a considerá-lo culpado por ataque à mão armada com intenção de roubar e matar, condenando-o a ficar preso pelo período entre doze a quinze anos, com um dia de reclusão e o resto do tempo em trabalhos forçados dentro dos limites do Estado de Boston.  

Inicia-se então o julgamento do caso South Braintree. Os primeiros atos acontecem em uma atmosfera hostil com muitas prisões de anarquistas que promoviam ataques de ação revolucionária nos Estados Unidos, desta forma os jurados não ignoram que eles sejam anarquistas, o que lhes traz uma condição extremamente desfavorável. Com efeito, ao invés de escolherem um advogado tradicionalista (um homem do Massachusetts) escolhem um totalmente diferente: Fred H. Moore, um homem desregrado em sua vida particular e muito ambicioso. O advogado cria um ambiente diferente ao julgamento, declarando que isso envolve toda a classe operária, o que teve efeito contrário, alimentando a hostilidade e inquietação dos “velhos capitalistas americanos” que são a essência do meio social e defendem a ordem do estado. Contratam-se ainda dois advogados americanos, os irmãos McAnarney, que colocam como condição para defender os italianos o convencimento de que eles são inocentes.  


     
   
 

Mais de 107 pessoas testemunharam que os acusados não estavam na cena do crime. Entre elas estava um garoto que vendia peixes com Vanzetti e um funcionário da embaixada italiana, a qual Sacco havia visitado no dia do crime. Tudo foi desconsiderado. As testemunhas de acusação, sob forte pressão da opinião pública conservadora, se contradiziam. De todas as testemunhas, apenas três afirmaram terem visto Sacco em South Braintree antes do acontecido. Uma afirmava que ele participou em tudo e outras duas declararam tê-lo reconhecido dentro do automóvel imediatamente após o ocorrido. Em geral, parece difícil basear-se apenas nestes elementos de identificação. Em relação a Vanzetti é a mesma coisa. Aqueles que o reconheceram, não podem dar um testemunho perfeitamente positivo.  

Um dos temas mais importantes dos debates é, sem dúvida, aquele que os jurados darão menor valor. Trata-se da controvérsia em que os peritos em balística iriam determinar se as armas e os projéteis usados no dia do crime realmente eram de Sacco e de Vanzetti. William Proctor, do departamento de Segurança Pública, está convencido não apenas da inocência de Sacco, mas também que o crime é fruto de uma quadrilha especializada e não de anarquistas em busca de dinheiro. Porém, quando questionado se a bala realmente partiu da arma do anarquista ele não descarta esta hipótese.  

Na mesma linha de pensamento segue o segundo perito citado pela acusação, Charles van Amburg, que logo trata o assunto de forma técnica e confirma que o tiro poderia ter sido disparado pela arma em questão. Do outro lado, os peritos da defesa, James Burns e Henry Fitzgerald concordam que a bala não foi disparada pela pistola, após um diagnóstico minucioso e alguns ensaios de tiro. Deste modo, termina empatada a batalha dos peritos.  

Os jurados precisavam ponderar e escolher entre as duas interpretações contraditórias. Esse caso é algo particular dentro do julgamento, pois se o revólver de Sacco não disparou a bala que matou Berardelli, desaparece um dos principais argumentos de acusação. A evidência do boné é também um indício importante perante os depoimentos insuficientes das testemunhas, mas à medida que acontecem os interrogatórios a hipótese de que algum dos assassinos usava boné é descartada.  

Após vinte e sete dias de interrogatório chega a vez dos acusados prestarem depoimento e, no decorrer dos debates, Sacco deixa-se levar pelos vários ataques do procurador Katzmann e desabafa sobre tudo o que acha e pensa da sociedade americana. Seu discurso deixa todas as pessoas estupefatas. O último ato do julgamento acontece no dia 14 de julho, trigésimo sétimo dia de audiência. Uma multidão enchia os corredores e entrada do palácio para escutar a condenação em primeiro grau de Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti, sendo os mesmos condenados à pena de morte. “Estão matando um inocente. Não se esqueçam. Estão matando dois homens inocentes”, gritou Vanzetti. Sacco, por sua vez, escreveu uma carta para seu filho no qual afirmava: “eles podem crucificar os nossos corpos hoje, como estão fazendo, mas não podem destruir nossas ideias que permanecerão”

Logo após a decretação da sentença de morte, o português Celestino Madeiros confessou ter participado do assalto em South Braintree e apresentou uma versão bastante razoável do ocorrido. Negou também o envolvimento de Sacco e Vanzetti no crime. Um policial chegou a afirmar que na época do latrocínio havia sérias suspeitas em relação a uma quadrilha de assaltantes profissionais que atuava na região. Os Morelli, como era chamada, assaltava carretas de fretes. Uma das áreas onde atuava, e na qual tinha “olheiros”, era justamente South Braintree. 

Outro policial, o agente Fred Weyand, afirmou que “era opinião corrente entre os agentes locais do Departamento de Justiça, que tinham algum conhecimento do caso, que o crime de South Braintree foi obra de um grupo de assaltantes profissionais”. Diante das novas provas, a defesa pediu novo julgamento. Entretanto, o juiz não considerou os novos fatos e rejeitou o pedido. 

Em maio de 1926 a Suprema Corte de Massachussets indeferiu os pedidos de novo julgamento. Em abril do ano seguinte – depois de sete anos de prisão – a sentença de morte foi confirmada. Nova onda de atentados e protestos se espalhou pelo país e pelo mundo. Afirmou Vanzetti: “não apenas não cometi um delito em toda a minha vida (…) como combati toda a vida para eliminar os crimes que a lei oficial e a lei moral condenam, como também o delito que a moral oficial admitem e santificam: a exploração do homem pelo homem”. E concluiu: “estou tão convencido que estou com a razão e que se vocês tivessem o poder de matar-me duas vezes e eu pudesse nascer duas vezes, voltaria a viver para fazer exatamente o que fiz até agora”. 

Vanzetti fez um apelo de clemência ao governador de Massachusetts, Tufts Fuller. Crescia a pressão internacional. O próprio ditador italiano Mussolini escreveu uma carta a Fuller pedindo que o governador agisse com humanidade. Em Nova York, 100 mil trabalhadores fizeram greve de protesto. Para desembaraçar-se do problema, o governador nomeou uma comissão especial de advogados, liderada pelo juiz Lowell, para estudar o caso e dar um parecer. Esta comissão, depois de alguns dias, confirmou a justeza da sentença de morte. A suprema corte e o presidente dos Estados Unidos recusaram o indulto. 

Somente em 23 de agosto de 1927, os condenados vão esperar na antecâmara da morte, para enfim cumprir o seu destino. Em suma, os italianos não foram condenados à morte, porém a sutileza do labirinto judicial e dos adiamentos sociais foram algumas das causas desta decisão. No dia 23 de agosto, à meia-noite e onze minutos, Sacco, e mais tarde, Vanzetti são mortos na cadeira elétrica.  

No dia seguinte o jornal comunista Humanité exibia em letras garrafais a manchete “Assassines!”. Uma grande indignação tomou conta dos operários que depredaram lojas e atacaram a polícia. O caso gerou revoltas em diversos grandes centros, como Itália, França, México, Inglaterra, Alemanha, República de Weimar, União Soviética, Brasil, Portugal, Espanha, Argentina, entre outros países. 

Morrem dois inocentes, acusados por um crime que não cometeram e utilizados como bode expiatório para combater o crescimento do anarquismo nos Estados Unidos.  

O controvertido caso foi tema de filmes e livros. O jurista Edmund Morgan, da Universidade de Harvard, investigou o processo e o julgamento durante vários anos. Em 1948, chegou à conclusão de que foi cometido um erro judicial. Nas palavras de Morgan, Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram "vítimas de uma sociedade preconceituosa, chauvinista e perversa". O governador de Massachusetts Michael Dukakis, em 23 de agosto de 1977, promulgou um documento absolvendo-os, exatamente 50 anos depois. 

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Agradecimentos especiais aos acadêmicos Bruna da Silva, Cristhian Sevegnani, Graziele da Silva, Hiara Hoffmann e William Roggie Leiria do curso de Direito da Católica de Santa Catarina que auxiliaram na pesquisa.


Diego Augusto Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Católica de Santa Catarina e autor de obras jurídicas.

Cidânia Aparecida Locatelli é Advogada, Pós Graduada em Direito Empresarial pela UNOESC, Pós Graduada em Direito Trabalhista pela UNINTER, Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, autora de artigos jurídicos em revistas especializadas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

D'ATTILIO, Robert; et al. Sacco Vanzetti: Developments and Reconsiderations, 1979. Boston: Boston Public Library, 1979.

EHRMANN, Herbert B. The Case That Will Not Die. Boston: Beacon Press, 1969.

BERTIN, Charles. Os grandes julgamentos da história. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Otto Pierre, 1978. Vol. Sacco-Vanzetti – Lindbergh.

MOURA, Clóvis. Sacco e Vanzetti: O protesto brasileiro, Brasil Debates, SP, 1979.

RUSSELL, Francis. A tragédia de Sacco e Vanzetti. Civilização Brasileira,  RJ, 1966.

Disponível em: https://uniaoanarquista.wordpress.com/2014/08/22/liberdade-ou-morte-o-grito-de-sacco-e-vanzetti-ao-proletariado-internacional/. Acesso em 29 abr. 2016.

Disponível em: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=996. Acesso em 29 abr. 2016.

Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/a-historia-do-assalto-que-levou-sacco-e-vanzetti-a-prisao. Acesso em 29 abr. 2016.


FONTE: Carta Maior




sábado, 12 de maio de 2018

Igreja e Marxismo: os passos de um novo diálogo


Por Mauro Lopes

O Papa com Pepe Mujica: o diálogo floresce em várias frentes

O diálogo entre o Vaticano e a rede Transform! de marxistas europeus prepara-se para seu momento mais ousado e ambicioso; depois de três rodadas em “terreno católico” prepara-se o primeiro encontro em “solo marxista”: em 2018 será instalada a Universidade de Verão do Diálogo na ilha grega de Syros, com o apoio da Universidade do Mar Egeu e do Ministério da Educação do governo socialista da Grécia.

Entrevistei o intelectual marxista Michael Löwy e o teólogo  frei Betto sobre o assunto. Löwy é um dos protagonistas das rodas de conversa na Europa; frei Betto é um dos grandes impulsionadores do diálogo e ação comum entre cristãos e marxistas na América Latina. É valioso esse “olhar cruzado” e convergente de um marxista e um teólogo para a busca de um diálogo que ambos, amigos pessoais, realizam há anos –com algumas produções intelectuais em conjunto, especialmente sobre o ecossocialismo. (Leia a íntegra das entrevistas de ambos ao final.)

É algo sem precedentes na história. Nunca houve um diálogo institucional entre a Igreja Católica e organizações marxistas para buscar saídas comuns aos desafios da humanidade. Nos anos seguintes ao Vaticano II houve aproximações informações, estudos, colóquios, alguns encontros institucionais na América Latina, mas em âmbito local. Nunca houve uma agenda institucionalizada entre a CNBB ou o Celam (Conselho Episcopal Latino-Americano) e organizações marxistas. O Papa Francisco, mais uma vez, quebra os paradigmas.

Brasileiro radicado na França, ele é um dos protagonistas dos encontros. Löwy um intelectual ponte do marxismo na direção do cristianismo. “Marxista heterodoxo”, como se define, acompanha e tem uma produção relevante sobre a Teologia da Libertação na América Latina –seu livro mais recente é O que é cristianismo da libertação, lançado em 2016 pela Fundação Perseu Abramo e Editora Expressão Popular.

Frei Beto e Michael Löwy
Frei Betto faz o mesmo movimento de Löwy, no sentido oposto: é um intelectual e um ativista ponte do cristianismo na direção do marxismo. Com mais de 60 livros publicados no Brasil e em todo o mundo, frei Betto tornou-se uma referência mundial ao lançar, em plena ditadura, em 1985, seu livro de entrevistas Fidel e a religião -conversas com Frei Betto. Como ele afirma na entrevista, ao relatar sua trajetória dialógica, “foram 33 anos de intenso trabalho para aproximar cristãos e marxistas, Igrejas cristãs e governos comunistas,  quebrando barreiras e buscando pontos de unidade.”

Seu olhar para a iniciativa do Vaticano não podia ser outro: “recebo como muita alegria essa iniciativa do papa Francisco”, ainda mais considerando a história: ”Há que recordar que Pio XII excomungava católicos que se aproximassem do partido comunista. E que o marxismo sempre foi abominado pelo papado e a cúpula da Igreja Católica”. Mas, para frei Betto, “o diálogo em si é positivo, mas insuficiente. O encontro histórico entre cristianismo e marxismo não se deu em torno de mesas de debates ou na academia. Deu-se na prática libertadora dos movimentos sociais e sindicais e, em especial, na luta dos europeus contra o nazifascismo. Portanto, há um denominador comum que une cristianismo e marxismo: os direitos dos pobres e seus anseios de libertação. É na práxis libertadora dos pobres que se encontra o campo privilegiado de união entre cristãos e marxistas.”

É este o caminho que Löwy antevê, especialmente na América Latina; para ele, um dos desdobramentos da nova etapa de relacionamento entre a Igreja e os marxistas será “a reabertura de um espaço para a Teologia da Libertação”. Mais ainda: a região é palco de algo mais avançado que a relação “entre católicos/cristãos e comunistas como dois blocos separados” foi  “o surgimento massivo de marxistas católicos,  ou católicos marxistas,  que tiveram um papel essencial em todos os movimentos sociais e combates emancipadores do continente nas últimas décadas”. Mesmo à sombra dos governos conservadores e submetidos à implacável perseguição da Cúria romana, há, segundo Löwy “milhares de marxistas cristãos/católicos pelo mundo afora, em particular na América Latina”.

João Pedro Stédile e Makota Celinha Kidevolu Gonçalves, da Coordenação
Nacional das Entidades Negras (CONEN) e do Centro Nacional de
Africanidade e Resistência Afro-Brasileiro (CENARAB) em missa na
basílica de São Pedro durante o III Encontro Mundial dos Movimentos
Populares (2016), no Vaticano.

Frei Betto vê de fato muita identidade entre o cristianismo e o marxismo, e este tem sido um tema de sua reflexão ao longo dos anos: “Resumidamente, cristianismo e marxismo são legados da tradição hebraica. Se fizermos um paralelo entre as suas respectivas referências, o que haveremos de encontrar? O que a Bíblia chama de paraíso ou Jardim do Éden, o marxismo qualifica de sociedade comunista primitiva; o que a Bíblia chama de pecado original, o marxismo qualifica de alienação; a Bíblia diz que o resgate do paraíso primitivo, ou seja, do mundo no qual coincidam essência e existência humanas, se dará no terreno da história, e o marxismo idem; o protagonista desse processo libertador será, para a Bíblia, o pobre, para o marxismo, o proletariado ou os oprimidos; o objetivo, para o marxismo, é alcançar a sociedade comunista, sem classes e Estado, para a tradição cristã, o Reino de Deus, no qual o amor será o denominador comum das relações pessoais e a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, das relações sociais”.

História interrompida e retomada – O diálogo entre a Igreja e os marxistas ressurge depois de 35 de repressão brutal  todas as iniciativas, durante os papados conservadores de João Paulo II e Bento XVI. Católicos e marxistas voltam a se encontrar na agenda proposta pelo Papa Francisco num movimento de continuidade histórica com o que aconteceu desde os anos 1930 até a década de 1970, nas lutas contra o nazifascimo na Europa e a opressão capitalista na América Latina. Foi um movimento que influenciou a convocação do Vaticano II e, depois, foi impulsionado por seu sopro.

Rompendo a enorme crosta de gelo que congelava a Igreja, na virada dos anos 1930/40 teve início na França uma aproximação entre cristianismo e marxismo, logo depois da derrota do nazifascismo, com aquela que seria conhecida pouco depois como Théologie Nouvelle (Teologia Nova) impulsionada pelos dominicanos Yves Congar e Marie-Dominique Chenu e os jesuítas Henri de Lubac e Jean Daniélou, ao lado da iniciativa dos padres operários. Eles eram mais de 100 em 1954, quando a experiência foi posta na clandestinidade eclesial por um decreto do Papa Pio XII (Giovanni Pacelli), sendo novamente acolhida pelo Papa Paulo VI, em 1965.

A França foi de fato decisiva para essa aproximação: “(…) a teologia francesa do pós-guerra (Congar, Duquoc, Chenu, Calvez, de Lubac) representava a ponta avançada da renovação do catolicismo, levantando os temas que seriam depois consagrados pelo Concílio Vaticano II”[1]. Foram anos de diálogo intenso não apenas com o marxismo, mas igualmente com a psicanálise, e de grandes avanços no ecumenismo, todos bloqueados a partir de 1979 com a eleição de Wojtyla.

No Brasil, o impulso inicial foi dado pela JUC (Juventude Universitária Católica), especialmente a partir do congresso de 1960[2]. Outro vetor relevante de aproximação, no Brasil e na América Latina, foi o grupo de teólogos formados na França e Bélgica, imersos no ambiente da efervescência pré e pós Vaticano II, entre eles Gustavo Gutierrez, José Comblin, Enrique Dussel e Juan Luis Segundo[3].

O Papa no II Encontro Mundial dos Movimentos
Populares, na Bolívia
Os encontros mundiais convocados pelo Papa – O renovado processo de diálogo entre a Igreja, a esquerda em geral, os movimentos populares, a reabertura dos espaços à teologia latino-americana, à teologia liberal do hemisfério norte, à teologia asiática, ao ecumenismo e à psicanálise desenvolveu-se ao longo do papado de Francisco. Eleito em fevereiro de 2013, a partir de meados daquele ano, o Papa começou a reorientar todo o processo relacional e dialógico da Igreja institucional.

O ponto culminante deste reencontro foram os três Encontro Mundial dos Movimentos Populares (em Roma, 2014 e 2016 e Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em 2015), convocados pelo Papa. No terceiro encontro, em Roma (2016), Francisco contrapôs dois projetos para o mundo: “Um projeto-ponte dos povos diante do projeto-muro do dinheiro” (aqui). Um ano antes, na Bolívia, o Papa fez uma veemente acusação contra o capitalismo: “E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava ‘o esterco do diabo’: reina a ambição desenfreada de dinheiro. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum” (aqui).

II Encontro Mundial dos Movimentos Populares
Integram o comitê de organização dos encontros mundiais de movimentos populares o cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz; João Pedro Stédile, pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e Vía Campesina; Juan Grabois, pelo Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE) e Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP) da Argentina; Jockin Arputham, National Slum Dwellers Federation of India; Xaro Castelló, Hermandad Obrera de Acción Católico (HOAC) da Espanha e Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (MMTC). Um protagonista de relevo nos encontros tem sido o presidente da Bolívia, Evo Morales.

Francisco, Tsípras e Baier – O diálogo formal com a rede de marxistas europeus teve início numa reunião em 18 de setembro de 2014 entre o Papa Francisco, Aléxis Tsípras e Walter Baier. Quem são eles?

Tsípras foi ao encontro na condição de vice-presidente do Partido da Esquerda Europeia e presidente do partido de esquerda Synaspismós (SYN) e o líder da Coligação da Esquerda Radical (Syriza), de oposição ao governo grego -pouco depois, em janeiro de 2015, o partido venceria as eleições e ele se tornaria primeiro-ministro.  Seu primeiro gesto como primeiro-ministro foi uma visita a um monumento de homenagem a gregos comunistas executados pela ocupação nazista em 1944.

Baier  é o coordenador da rede europeia de organizações marxistas Transform!, com participantes de 18 países e 25 publicações de diversos moldes. Entre 1994 e 2006 foi presidente do Partido Comunista da Áustria, quando deixou o cargo para assumir a coordenação da rede Transform! , permanecendo como membro do Conselho de seu partido. Ele é o representante da rede no Fórum Social Mundial (FSM) e muito ligado ao movimento católico Focolares, fundado por Chiara Lubich em 1943.

A audiência privada entre o Papa e os dois prolongou-se por 35 minutos e, ao final, decidiu-se abrir um processo formal de diálogo entre a Igreja e os marxistas. Logo depois do encontro, Tsípras afirmou ao The Guardian  que Francisco é o “pontífice dos pobres” e que o mais importante fruto da reunião havia sido a constatação de que “há necessidade de criação de uma aliança ecumênica contra a pobreza, a desigualdade, contra a lógica do mercado e do lucro acima das pessoas” .

Logo depois, em janeiro de 2015 quando o Syriza venceu as eleições na Grécia, L’Osservatore Romano,  jornal oficial, do Vaticano comentou: “Com a vitória do Syriza nas eleições gregas, certamente abre-se uma nova fase na Europa, uma fase que passa pela expansão de um espaço social, em reação às políticas de austeridade. Quanto mais os cidadãos europeus pedem para ser envolvidos para além das lógicas dos mercados, mais o trabalho da política deve ser o de acolher as reivindicações que partem da sociedade”.

A primeira reunião oficial – O primeiro “encontro de trabalho” entre o Vaticano e os marxistas europeus aconteceu entre 31 de março e 1 de abril de 2016, no Instituto Universitário Sophia, (fundado por Chiara Lubich), perto de Florença.

O próprio Löwy preparou um relatório resumido da reunião (aqui).

Uma nota conjunta ao final dos dois dias de trabalho afirmou: “Em vista das dificuldades e perigos atuais no mundo, todas as pessoas de boa vontade devem se unir com independência de suas filosofias, suas religiões e seus enfoques teóricos e práticos, para encontrar formas de saída à crise. Para citar Francisco, são necessários tanto a transversalidade como um diálogo através das linhas divisórias tradicionais (…)”.

Na nota afirmou-se ainda a concordância dos participantes quanto à “convicção de que a Terra foi dada a todas as pessoas, isto é, à humanidade como um todo, incluindo as gerações futuras. Assim, a cooperação quer contribuir a todas e todos os habitantes de nosso planeta para que os seres humanos possam viver uma vida digna, em paz, liberdade e justiça”. A declaração destacou também que “as diferenças de ponto de partida são consideradas como um enriquecimento e possa contribuir a clarificar, aprofundar e propor os pontos de vista próprios”.

O pensamento de Francisco, especialmente a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013), sobre o anúncio do Evangelho e as relações da Igreja com a sociedade, e a Encíclica Laudato Si foi considerado, segundo o resumo de Löwy, “elemento importante nas discussões e serviu como referência tanto para os católicos como para a delegação da rede Transform! contava com Walter Baier (Viena), Peter Fleissner (Viena), Cornelia Hildebrandt (Berlim), Michael Löwy (Paris), Giulia Rodano (Roma); a Santa Sé esteve representada pelo arcebispo Ângelo Vincenzo Zani , secretário da Congregação para Educação Católica e pelo economista Stefano Zamagni  (nomeado em 2013 pelo Papa Francisco como membro da Academia Pontifícia de Ciências). Outros participantes eram vinculados ao Movimento dos Focolares: Bernhard Callebaut e Paolo Frizzi (Universidade Sophia), Catherine Belzung (França), Lorna Oro (Irlanda), Alejandra Herrero (Argentina), Herwig Van Staa (Innsbruck), Franz Kronreif (Áustria), e Herbert Lauenroth (Alemanha).

O arcebispo Vicenzo Zani observou ao final do encontro estar convencido de que a ecologia e o meio ambiente devem ser parte da educação católica em todo o mundo e que são necessárias medidas concretas sobre o tema da mudança climática e a solidariedade com os imigrantes que buscam encontrar refúgio na Europa.

Francisco segue adiante – O Papa tem participado indiretamente dos encontros. Não há alarde no Vaticano sobre as reuniões, pois Francisco não deseja provocar ainda mais a polêmica e as manifestações sectárias dos conservadores. Portanto, a ordem no Vaticano sobre a agenda com os marxistas é discrição. Isso não quer dizer lentidão ou desistência. Uma característica do papado de Francisco tem sido a de manter distância dos conflitos internos da Igreja, ignorando os ataques e insultos, tratando todos bem, mas sem qualquer recuo em seu projeto para o cristianismo no século 21.

Depois do primeiro encontro em 2016, houve mais dois, um novamente na Universidade Sophia e outro, em outubro último, no Castel  Gandolfo, próximo a Roma. O local foi a “residência de verão” dos papas desde o século VII. Em 2016, Francisco renunciou ao privilégio e ordenou a incorporação do apartamento que lhe era destinado ao museu que funciona no local.

Os olhos agora estão voltados para a primeira reunião na Grécia,  em 2018.